Há uns três anos, num certo jornal, os editores-responsáveis tiveram uma ideia para alavancar a cobertura do Carnaval soteropolitano e assim fugir um pouco de Ivete e Chiclete, Chiclete e Ivete, num loop que tende ao infinito. Os repórteres iriam se infiltrar para sentir na pele (clichê passaporte dos infernos) a dureza da rotina de quem trabalhava na festa. Uma foi ser cordeira por um dia, outro virou vendedor de cerveja, um terceiro vestiu-se de gari. Minha memória é fraca, só lembro desses, mas desconfio que havia mais, nessa mesma linha de esmiuçar as agruras do baixo clero.
As reportagens ficaram boas, entre divertidas e até comoventes, mas permaneci com a sensação de que aquilo não podia ser certo. Achava – e ainda acho – que a melhor maneira de saber o que um cordeiro sente, espremido entre pobres e ricos, pretos e brancos, é perguntando pra ele, e não fingindo ser um.
Citei o episódio para dar um arzinho de proximidade, mas esse é um expediente comum em jornais, revistas e programas de TV. Outro dia, numa reportagem sobre moradias precárias, um apresentador passou a noite dormindo em uma barraca de lona numa invasão, na tentativa de mostrar um desconforto e sofrimento que fossem mais verdadeiros.
Lembrei disso tudo porque ontem o jornalista Sérgio Villas-Boas falou rapidamente sobre o assunto em sua palestra no Congresso da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), que acontece em São Paulo. Ele também é contra essas infiltrações, basicamente por uma única razão: o cara que dorme na lona sabe que no dia seguinte estará deitado na cama quente de sua casa. E isso muda tudo. O que o repórter pode fazer é tentar investigar como é que uma pessoa se sente quando, imaginando suas futuras noites, só vê aquela lona. E assim iluminar uma realidade.
Um jornalista que se faz passar por outra pessoa numa situação específica é só um jornalista que se faz passar por outra pessoa numa situação específica. O relato dessa experiência pode ser legal, divertido, comovente, mas não transforma seu autor num cordeiro, num sem-teto, muito menos numa estrela.
Tatiana Mendonça escreve às sextas antes que a sexta acabe
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