Talvez a memória seja mesmo supervalorizada, foi a conclusão a que eu cheguei depois de ler uma série de textos e matérias diferentes – mas muito parecidas – sobre a notícia de que Gabriel García Márquez não irá mais escrever, porque está sofrendo de demência senil.
Temos uma relação meio esquizofrênica com a memória, que nos faz estar sempre querendo lembrar mais e querendo esquecer logo. Ora “Funes, o memorioso”, ora Lacuna Inc. E há, de fato, elementos de tragédia na história de García Márquez. Há a nossa pequena tragédia: não teremos mais livros novos – apesar de que os mais recentes dele não foram assim tão memoráveis. E há a tragédia dele, a importante: não o deixar de escrever, mas a dificuldade de reconhecer a própria família e os amigos, o isolamento que esse tipo de doença acaba por provocar.
Suspeito que escrever ele até poderia – e seria muito interessante ver como escreve um homem que tem dificuldade de acessar suas próprias experiências. A tragédia dessa história, para mim, é que não poderei mais ler a segunda parte da autobiografia de Gabriel García Márquez. A partir de agora, terei que aprender sozinha como me lembrar. Porque memória não é lá uma coisa muito bonita se você não sabe como tratar as suas lembranças.
A capacidade de costurar retalhos da própria vida, da vida dos pais, da história da família e dos amigos em boas histórias é admirável. Mas a grande descoberta de “Viver para contar” foi que, sem o olhar terno que GGM tinha para sua própria história, seria provavelmente impossível conseguir fazê-lo.
Favor não confundir “olhar terno” com a excessiva dramatização da própria vida, que frequentemente faz com que as autobiografias se pareçam com uma biopic de Hollywood – assista uma ou duas e você vai pensar que, inevitavelmente, todas as pessoas tem uma infância de privações financeiras ou emocionais, realizam o principal sonho durante os 20 anos, se afundam nas drogas, perdem um grande amor por conta dos problemas e do orgulho, encontram alguém que os ajuda a “vencer a batalha” e terminam fazendo um grande show que fica para a história.
Ao ler a história de García Márquez por ele mesmo, nada parece uma dramatização, ainda que tudo tenha ares de conto fantástico. Ninguém morto reaparece, ninguém é acompanhado por borboletas amarelas, não chovem 4 anos, 11 meses e 2 dias. Mas a impressão final é de que mesmo a prostituta com quem ele pode ter passado uma noite aos 19 anos teve as duas linhas mais sinceras e bonitas que jamais escreveram sobre ela. Mesmo que fique claro, também, que ela era feia, pouco higiênica e que ele broxou.
Há duas semanas escrevi um texto aqui no Purgatório com uma lembrança de um momento triste. Me perguntaram algumas vezes “para quem” seria o texto, mas o texto não era um recado de nenhum tipo. Era só um episódio que, de repente, me deu vontade de transformar em história. Porque já deixou de ser uma memória que eu mandaria para o saco sem pensar duas vezes e passou a ser parte do meu viver para contar. Já é compreensível, já é até meio bonita. Já é um livro que eu li e me deixou triste e me ensinou algo. Já é ficção.
Camilla Costa escreve às quintas-feiras.
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