Não começa com o banheiro, nem com a escolha do lado na cama, nem com a divisão do guardarroupa. A vida a dois começa com uma estante.
Pouco depois que a estante nova chegou, corremos para arrumá-la com o entusiasmo de quem constrói um castelinho de areia juntos na praia. Um faz o fosso enquanto o outro arruma a ponte. Certos de que tudo vai ficar a contento no final.
Mas arrumar uma estante a dois, assim como fazer o castelo de areia, significa considerar que ela um dia pode se desfazer. Tirar os carimbos ex libris de cada um das caixas e definir com cuidado o que é de quem, contemplar o fim do amor, deixar para depois a decisão sobre o que faremos com os livros comprados em conjunto porque aí também já é demais.
Mal sabíamos que a marcação de território era o começo de uma série de decisões desafiadoras sobre a vida a dois.
Um dia li um livreto que falava sobre o fato de termos livros demais, que me apaziguou com relação aos meus tantos comprados e ainda não lidos. A biblioteca pessoal é um projeto, dizia o autor. Nela consta também, e sempre, e principalmente, o que queremos ler. A biblioteca também é algo que se mostra, para despertar o interesse nos visitantes. E quem disser que nunca pensou nisso está mentindo.
Aqui em casa, felizmente para os projetos de leitura e de impressionamento de visitas, temos gostos parecidos – mas não parecidos demais – e um interesse mútuo pelos gostos do outro. Funcionou assim com quadros, móveis, roupas de cama, tintas de parede. Mas para arrumar a estante também foi preciso compreender que nem sempre seria. Nem todos os livros dele combinavam com os meus. As lógicas de organização, que até então pareciam, na maior parte das vezes, harmônicas, caminhavam em direções completamente distintas.
Brigamos pela arrumação dos quadrinhos (por autor! por tamanho? por cores…). Pela colocação dos bibelôs. Pela função que deveria prevalecer na hora de organizar os livros nas prateleiras do escritório – estética ou prática. Ele me acusou de não deixá-lo imprimir sua marca em nenhuma das pilhas de livros. Eu o acusei de estar sendo injusto, mas mal o deixei imprimir sua marca nas pilhas de livros.
Eu disse que ele estava mais preocupado em como os livros iam parecer na estante do que como funcionariam para mim. Ele insistiu que do seu jeito era melhor. O clima ficou tenso, as palavras rarearam. A coisa se apaziguou um pouco quando ele me ensinou um método bonito e eficiente de guardar a coleção de Piauís.
Perseveramos, fazendo um esforço calculado e silencioso para escolher os objetos da prateleira superior. Discutimos um pouco mais. Deitamos de cara amarrada e pouco satisfeitos com o resultado. Eu dormi mal, ele também.
No dia seguinte, eu mal olhei a estante. Ele trocou a mesinha de canto e a luminária de lugar. Fomos vê-la juntos. Talvez tenha sido a noite o que ela precisava para que os livros se colocassem em seus lugares, talvez seja a nova iluminação. Talvez sejamos nós. Ficou linda.
Começou com uma estante, não importa agora como vai terminar.
Camilla Costa escreve às quintas-feiras.
15 comentários
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dezembro 15, 2011 3:55 pm às 15:55
Beth Ponte
Adorei o texto. E estou precisando saber qual é esse método bonito e eficiente de guardar a coleção de Piauís. ;) bj
dezembro 16, 2011 6:21 am às 6:21
Diego D.
Também quero saber (apesar de ter me desfeito das minhas)!
dezembro 16, 2011 6:24 am às 6:24
Diego D.
Alias lembrei dessa entrevista (http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,eletronicos-duram-10-anos-livros-5-seculos-diz-umberto-eco,523700,0.htm) de Umberto Eco, em que ele diz: “A forma como você organiza seus livros depende da sua necessidade atual. Tenho um amigo que mantém os seus em ordem alfabética de autores, o que é absolutamente estúpido, pois a obra de um historiador francês vai estar em uma estante e a de outro em um lugar diferente”. E ai? Você arrumou por ordem alfabetica?
E você ja leu Ex Libris: Confessions of a Common Reader, de Anne Fadiman? Eh otimo. Tem inclusive um texto sobre um politico americano que desenvolveu um método proprio de organizaçao das estantes.
dezembro 16, 2011 1:33 pm às 13:33
Camilla Costa
Não li ainda esse livro, quero ler!! Da entrevista eu lembro =)
dezembro 16, 2011 7:50 am às 7:50
Rodolfo S Filho
Eu e Daniela tempos estates quase separadas. Quase tudo de ficçāo, hq e maluquices diversas é meu. Quase todos os livros de arte e semiótica são dela. Os livros de receitas são nossos. Já são cinco estantes quase lotadas… E sou eu que arrumo tudo e sei onde está tudo.
Toda vez que penso em livros ou discos e casais, me vem à mente esse desenho do Glauco. http://4.bp.blogspot.com/_LVicZUfwsn4/S7JNgDtXlJI/AAAAAAAAEXg/VIi0Sh_viuE/s1600/glauco+pixinguinha+004.jpg
dezembro 16, 2011 1:34 pm às 13:34
Camilla Costa
Um clássico!
dezembro 16, 2011 1:19 pm às 13:19
Daniel Sabóia
Lindo texto!
Um professor uma vez disse que o mais importante em uma biblioteca é saber em que livro achar o que precisamos ler, em cada momento da nossa vida. Isso surgiu de uma conversa sobre esta angústia que também tinha de ter muitos livros que não li. Mas isso se dissipou totalmente quando tomei essa consciência de que nossa biblioteca é, sobretudo, o que queremos ler e o que precisamos consultar sempre, percebendo a cada vez de maneira diferente… nossos livros mudam, junto com a gente.
dezembro 16, 2011 1:37 pm às 13:37
Camilla Costa
Que bom que gostaram =)
dezembro 21, 2011 12:36 pm às 12:36
Livia
Coisa fofa! A estante e o texto. <3
janeiro 27, 2012 8:51 pm às 20:51
Mariana Siqueira
Já se mudaram, né Milla? Ficou ótima a estante e o efeito da luminária, lindo. Bjos
fevereiro 2, 2012 9:06 am às 9:06
don't touch my moleskine » o amor e os livros
[…] O teste da estante, por Camilla Costa […]
fevereiro 2, 2012 12:12 pm às 12:12
Casamento dos livros « dois casados
[…] O teste da estante por Camilla Costa […]
fevereiro 2, 2012 1:20 pm às 13:20
Dani Grosso
Texto adorável! Fico imaginando como serão as estantes no futuro? Não serão?!? Será que tudo se resumirá a arquivos digitais e tablets? Será a pena de morte anunciadas das estantes? Das brigas pelas edições? Faltará poesia até na hora da separação?
fevereiro 2, 2012 4:48 pm às 16:48
O amor e os livros « Os Misantropos
[…] O teste da estante, por Camilla Costa […]
fevereiro 6, 2012 9:57 pm às 21:57
Camilla Costa
Me pergunto o mesmo, Dani. Mas acho que sempre vai ter um cacareco ou uma coleção deles pra guardarmos juntos.