Consta que a numerologia é ciência antiquíssima e complexa, que reúne conceitos e técnicas vindas de todas as grandes civilizações e de seus maiores pensadores.

Recentemente descobri que faço parte de uma geração, circunscrita geograficamente à cidade de Feira de Santana*, que deve à dita ciência boa parte das suas conquistas. Na verdade, devemos tudo isso à finada dona Lourdes Malafaia e a sua aplicação filantrópica da ciência numerológica em prol de nossos destinos.

Sem a possibilidade de falar com ela ou com sua família, a reportagem de O Purgatório foi em busca de seu próprio “Rosebud”, e tenta aqui reconstruir um pouco de sua personalidade e legado.

Dona Maria de Lourdes era proprietária do cartório de Registro Civil do Fórum Felinto Bastos, em Feira, muitos anos atrás. Além de empresária e numeróloga, diz-se que ela era também uma pessoa de boa índole, sempre disposta a ajudar os amigos e necessitados.

Por eles, dava um jeito de facilitar trâmites burocráticos e refazer certidões de nascimento, caso a família mudasse de ideia sobre o nome do recém-nascido. Se bem que, segundo os relatos, é provável que ela própria fosse, muitas vezes, a causa das mudanças de nome.

Uma tia paterna, grande amiga de d. Lourdes, chegou a receber uma visita noturna dela, pouco depois de registrar sua única filha mulher. Até tarde da noite, a numeróloga tentou convencê-la a acrescentar uma letra específica no fim do nome da menina, para torná-lo portador de bons augúrios. Ela mesma cuidou de retificar a certidão de nascimento no dia seguinte.

Mas se engana quem pensa que a numerologia de d. Lourdes era esse mero contar de letras. Ela também levava em conta variáveis como dia e horário de nascimento da criança, em uma série de cálculos complexos que ainda precisavam se ajustar à vontade dos pais.

Foi o que aconteceu quando meus pais tiveram sua primeira filha, que quase se chamou Thays Cristina por interferência de D. Lourdes (o y, que tem valor numérico maior do que o do i, também foi sugestão dela). Após embates domésticos, meu pai, co-responsável pela escolha infeliz do segundo nome, teve que voltar ao cartório para nova negociação.

O “Cristina” deu lugar ao “Maria”, que foi estendido também para as duas filhas seguintes. Por causa dos cálculos de Lourdes Malafaia, ganhei ainda o segundo L que me distingue de tantas Camilas que encontro em São Paulo (uma cidade com mais Camilas do que todas as outras que conheci).

Assim aconteceu também com inúmeros filhos de casais feirenses da mesma época, que oferecem gratidão a outros por seu sucesso, sem saber que tudo começou no cartório, quando a numerologia de d. Lourdes estava na moda.

Por minha mãe, soube de pelo menos uma Laís que, com poucos dias de nascida, virou Fernanda. Hoje ela é médica de êxito na cidade. Quem sabe o que poderia ter sido.

Minha tia diz que d. Lourdes, versada na matemática do destino, sabia reconhecer instantaneamente se um nome era “maravilhoso” (como o de um tio meu que, segundo ela, “teria tudo na mão, de bandeja”), “muito bom” (o de meu pai) ou “ruim” (o de outro tio, não sabemos o porquê).

Hoje, só posso confiar no plano que Lourdes Malafaia tinha para mim, porque não sei em que categoria se encaixa o meu nome, nem tenho como saber se as previsões para ele se concretizaram.

Mas sei que, apesar das boas intenções, ela não deve ter acertado sempre. Afinal, além do nome próprio, existe a influência do dia e da hora do nascimento. Além disso ainda, há as escolhas dos pais. E mais além, há o que fazemos com os nossos nomes.

Andei sabendo também, mas não posso confirmar, que a sobrinha querida de d. Lourdes – que herdou dela o cartório e, provavelmente, um nome da categoria “maravilhoso” – não foi muito feliz na vida. Talvez por isso, nunca tenha praticado a numerologia.

*nome fictício para preservar a identidade da cidade

Camilla Costa escreve às quintas-feiras