por Moreno Pacheco

“Deus é a República e quem governa a República governa Deus. Da mesma maneira, Deus é justiça, e quem faz a justiça faz Deus.”[1]

“A sociedade brasileira deseja ser vingada. Ela quer se vingar daqueles que estão legando um País tão cheio de problemas e que têm causado um dano tão grande às nossas esperanças em relação ao futuro. Esse instinto de restaurar a nossa própria cidadania é que está fazendo o brasileiro se manifestar dessa maneira”[2]

 

Na semana passada, Joaquim Barbosa liderou pesquisa de intenções de voto para 2014, feita entre os manifestantes paulistas. Realizada pelo Datafolha, a pesquisa foi estimulada. Barbosa bateu nos 30%, seguido por Marina Silva com 22% e Dilma com 10%.

Na última quarta-feira (26/06), empurrado pela comoção popular, o Senado votou e aprovou projeto de lei do senador Pedro Taques, do Mato Grosso, que torna as práticas de concussão e corrupção ativa e passiva crimes hediondos.

Estas são duas pontas soltas, entre tantas, que apontam para um desejo de judicialização da vida política do Brasil. Mas a nossa experiência de aderência legal seletiva (leis, aqui, pegam ou não) deveria servir para lembrar que a ilusão de que todos os conflitos e problemas podem ser resolvidos pela expansão da norma positiva é mesmo isto: uma ilusão. Leis não fixam comportamentos, mesmo quando não faltam braços que apliquem as sanções previstas.

A monopolização do controle do comportamento pela tribunalização, longe de constituir uma solução para o problema, pode ainda contribuir para sua complicação. É que esta tendência de avanço da norma engessa a sociedade numa malha unidirecional de prescrições e subtrai um espaço de ventilação, permitido pela pluralidade de foros que constituiu a tradição ocidental desde fins da Idade Média, em que outras modalidades de fiscalização operam.

A ética ou o costume, por exemplo, viram disciplinas acessórias à máquina jurídica: no limite, pune-se quem rouba não porque é errado roubar, mas porque é ilegal. Hoje, corruptos desmascarados continuam exercendo seus cargos públicos não só porque a justiça os deixa livres e impunes, mas também porque as pessoas que os cercam continuam reconhecendo sua legitimidade em fazê-lo. Eles não se sentem isolados, seus espaços de poder não são esvaziados. Seus contínuos vão aos bancos por eles, suas secretárias anotam seus recados, seus colegas sentam-se à mesa em sua companhia. “A justiça ainda não se pronunciou”, tudo está dentro da normalidade.

A candidatura do Barbosa parece, por esse lado, uma resposta à sensação geral de impunidade e à percepção de que o Estado não consegue administrar a justiça. “Coloquemos um juiz para comandar o país” e resolva-se.

Mas, por outro, a proposta do Barbosa presidente parece se comunicar com um modo de arbítrio político que cala fundo na tradição brasileira. Não é curioso que, na pegada da proposta constituinte de Dilma, tenhamos relembrado o único plebiscito realizado em nossa Nova República? E que os comentários sobre o dito-cujo tenham centrado, de maneira jocosa, a proposta de retorno da monarquia?

José Murilo de Carvalho paga até hoje por se ter permitido pensar o regime monárquico à época do plebiscito de 1993. Mas tudo o que ele queria era refletir sobre o papel do Poder Moderador, em sua visão uma instituição capaz de acomodar a agudeza do conflito político nacional no Império, definido pelas nossas enormes desigualdades sociais e econômicas e por rivalidades regionais intensas. O rei, segundo José Murilo – que estava apenas cogitando a ideia, assim, num plano meramente especulativo -, era figura politicamente neutra e, por isso mesmo, capaz de arbitrar e manter a estabilidade do sistema.

Barbosa não é identificado com nenhum partido. Defendeu o sistema de cotas da UnB contra ação do DEM, foi relator do processo do mensalão que sugeriu a condenação de cabeças do PT. Haveria aí um rumor de fundo, de desejo da existência de um Estado encabeçado por uma figura que simbolizasse a aplicação da justiça na Terra, acumulasse poderes hoje distribuídos republicanamente e estivesse distante e acima da realidade partidária?

No Antigo Regime europeu, cabia ao rei a administração da justiça, que tinha origem divina. Muito tempo depois, Grant Morrison sugeriu que os super-heróis são os deuses dos tempos secularizados.  E agora, nas redes sociais, a toga do Barbosa disparou comparações com o Batman. Talvez as pessoas que compartilharam o meme não o soubessem, mas Bruce Wayne é refém da legalidade. Ele não crê no justiçamento feito à revelia das normas, e seu modo de proceder o obriga a entregar os malfeitores às autoridades. Se vê frustrado, muitas vezes, pelo sistema penal falho e corrupto de Gotham City, que devolve às ruas os sujeitos que ele se esforça por prender. Mas ele continua acreditando no sistema.

Com um pouco mais de cultura de gibi, as pessoas talvez optassem por um Judge Dredd. E poucas coisas me parecem menos republicanas do que isso.

 

[1] Consigliere da República florentina, anônimo, 1431.

[2] Fernando Collor, em algum momento de 1989, segundo Sebastião Nery.

 

Moreno Pacheco escreve no Purgatório nos sábados de junho.