Ivone era órfã e tudo o que sabia sobre seus genitores era que eles haviam escolhido seu nome: estava escrito em um bilhete colocado junto à cesta de palha onde ela dormia, quando a encontraram nas escadarias do hospital Irmã Dulce. Ivone agora tinha 11 anos e vivia em um orfanato no Engenho Velho de Brotas.
Alguns dias atrás, a garota teve a ideia de digitar seu nome no Google. Ivone. Sem sobrenomes, que não os tinha. O primeiro resultado da busca foi um link da Wikipédia para o perfil de Dona Ivone Lara, de quem ela nunca ouvira falar. Por um instante, imaginou-se filha da sambista, mas, ao ver uma foto dessa, se deu conta de que Dona Ivone era velha demais para ser sua mãe. Recalibrou o pensamento: e se ela fosse sua avó, a quem os pais homenagearam repetindo-lhe o nome na neta? E se eles se enamoraram justo ao som de uma canção da avó?, como Nasci para sofrer, a música de destaque no texto que leu. Tanta gente por aí que não terá a metade do prazer que sei gastar… Aqueles versos ela não entendia direito, mas eram tão bonitos, e o nome da canção dizia tanto a Ivone, que ela se convenceu de que a história não podia ter sido diferente.
Havia também Ivone Silva, atriz e humorista portuguesa, que morrera antes de ela nascer, mas que bem podia ser a outra avó, avó paterna quem sabe, de quem herdara o furinho no queixo e o humor que os meninos do orfanato diziam que ela tinha, porque sabia contar piadas de papagaio melhor que ninguém. Então era isto: seu pai devia ser um português, filho de Ivone Silva, que viera para o Brasil, como os portugueses gostavam de fazer desde 1500. Chegando aqui, conheceu sua mãe, carioca, filha de Dona Ivone Lara e compositora da trilha daquele amor. Talvez a avó tenha cantado no casamento deles e, provavelmente, para Ivone, a garota, ter ido parar em Salvador, a lua-de-mel dos pais deve ter sido na Bahia. Ela sabia que Salvador era bastante frequentada no verão. E também a ilha de Itaparica, que tinha vontade de conhecer.
Pode ainda que Ivone Hoffman fosse sua tia-avó. Com aquele sobrenome estranho e sendo também ela atriz, devia pertencer ao lado estrangeiro de casa. Ivone não se lembrava da cara de tia Ivone na tevê, mas a Wikipédia dizia que era famosa, porque trabalhava em novelas da Globo. A Globo, ela sabia, ficava no Rio. Vai ver, antes de se casarem e partirem para a lua-de-mel em Itaparica, os pais se conheceram no teatro do Rio, quando foram assistir a uma peça estrelada por tia Ivone, com quem o pai morava desde que viera de Portugal. Ivone nunca fora ao teatro, mas tinha na cabeça a idealização de como seria um: com pé-direito alto, um lustre de cristal de todo o tamanho, cortinas vermelhas de cetim, camarotes com sacadas e pequenas lâmpadas incandescentes na borda do largo palco de madeira. Deve ter sido num local desses que os pais se encontraram, sim. E deram o primeiro beijo, ao som de Nasci pra sofrer.
Pensou se devia escrever uma cartinha para a tia, perguntando do paradeiro do sobrinho, convidando-a para uma visita a Salvador ou oferecendo-se para ir visitá-la no Rio, porque família, tia, família tem de ser unida. Contudo abandonou a redação mental da cartinha para entender como Ivone Moysés, en… xa… dis… xadris… ta… encaixava-se em sua genealogia. Porque Ivone não sabia jogar xadrez.
O que sabia, isto sim, era jogar baleada. Arremessar a bola com força no adversário e dar saltos de goleira para apanhar ou para se desviar de bolas que viessem em sua direção. Uma vez o professor de educação física havia dito que ela poderia ser uma grande atleta se quisesse. Atleta não vai para Olimpíada? Ivone Moysés não fora para uma Olimpíada? Então eram parentes com certeza: talento é coisa que vem do sangue. Tia Ivone era irmã mais velha da mãe. Comentava-se até que, embora levasse o nome da avó, aquela não era a preferida desta, porque ninguém era mais gentil e carinhosa que a mãe de Ivone. Mas também não era desprezada, porque família, tia, família tem de se amar muito, e apoiar-se. Tem de vibrar pela medalha de tia Ivone, vibrar assim, ó, é campeã!, é campeã!
Mesmo a outra tia-avó do lado do pai, Ivone Ramos, uma escritora em Cabo Verde, devia acompanhar pela internet, como ela, os sucessos de cada membro da família, mesmo dos parentes não sanguíneos, mas que se tornaram parentes depois do casamento de sua mãe de seu pai. Ivone sentia-se privilegiada por fazer parte daquele grupo especial, de pessoas tão atenciosas, ainda que os de fora não compreendessem direito o humor da família, porque estranhavam o nome do tio Ivone de Franceschi, jogador italiano. Homem com nome de mulher pode?, perguntavam os de fora uns aos outros, não para ela, e torciam o nariz em seguida. Ivone dava risada. Aquilo fora brincadeira da avó; era a cara daquela gozadora pôr num filho homem nome de mulher, o seu nome. O coitado do tio sofria à beça, como seu colega de escola, José Maria, mais chamado de Maria que de Zé.
Aqueciam-lhe o estômago aquelas descobertas, provas de que não estava sozinha no mundo, não era filha de chocadeira, filha de mãe-lucinda, mas que vinha de uma família amada, bem-sucedida e feliz, apesar da morte dos pais em um acidente de carro na volta da Bahia para o Rio, única explicação possível para, vindo de onde veio, ela ter ido parar onde estava. Você pode pensar que foi o desejo de ser resgatada por um dos parentes distantes que motivou Ivone a fazer o que esteve fazendo hoje de manhã, mas para ela a questão era outra: era tradição familiar ter uma história na internet. Com a ajuda do professor de informática e depois de horas de teclas, terminou sua biografia a acaba de disponibilizá-la online; está lá, para qualquer um ver, pode buscar e conferir:
Ivone Lara Silva Hoffman Ramos Moysés de Franceschi (Salvador, 15 de março de 2002), também chamada de Vone, Vona, Vonvon e Ií, é filha de um apaixonado casal que se conheceu no teatro, no Rio de Janeiro, em peça da tia-avó…
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Breno Fernandes escreve às terças
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