A primeira a gritar foi a noiva, que fitava a porta da capela, desejosa de vento revigorante. O vestido pesava-lhe desde a manhã anterior, e ninguém tivera a consideração de pedi-la que o despisse; nenhuma das cunhadas, nem a sogra, nem a própria mãe dera fé de que não só o noivo, mas também aquelas vestes mereciam ser deitadas à cova que dois escravos ajustavam no pé do altar. Ao seu grito seguiu-se o estalido de metal contra pedra. O homem que adentrava a igreja carregava um chanfalho e um gadanho pintados de sangue, talvez o dele mesmo, que lhe cobria a pele negra inteira, como se suasse vermelho.
O réquiem que as sinhás e as sinhazinhas entoavam virou alarido. O sinhô pai do noivo, dedo em riste, ordenou que os outros cativos detivessem o entrão, porém esses não se mexeram. O sinhô pai da noiva repetiu o comando do compadre aos seus, e houve um princípio de reação, mas o choque entre espada e foice, provocado pelo invasor a meio caminho do altar, emitiu uma vibração que lembrou os companheiros de grilhões de que eles tinham as mãos vazias, interrompendo-lhes os gestos hostis.
Badu aproximou-se do corpo. Com esforço e com rangidos internos, ajoelhou-se. Depôs as armas, tomou a mão de D. Domingos e pressionou-a contra o peito. Tocou-lhe o rosto com as pontas dos dedos: primeiro a testa, depois o nariz, depois os lábios. O rastro da carícia ficou marcado com sangue rútilo, e o lenço mais ao alcance era a cauda do vestido da noiva, que usou para limpá-lo; as lágrimas foram o solvente.
Quando moleques, sempre limpava o rosto do sinhozinho, para que sumissem os vestígios dos seus pequenos furtos de rapadura e de doce à despensa. A ação não tinha outro porquê senão a autodefesa: caso fosse flagrado, o castigo merecido por D. Domingos seria aplicado no seu leva-pancadas, o próprio Badu. Talvez o sinhozinho não desconfiasse das razões egoístas para aqueles cuidados, porque muitas vezes oferecia um naco do roubo a Badu e, a partir de um momento, começou ele também a limpar o rosto do escravinho: primeiro com as mangas da camisa, depois com as mãos, depois com a língua.
Desmaculado o rosto do cadáver, Badu abriu-lhe os botões do colarinho e aninhou, entre os pelos alourados do peito imóvel, uma tira de couro apinhada de berloques insuspeitos. Um dente de cobra, achado no canavial. Uma conchinha de caracol que guardava o sonho de uma viagem ao Reino. A pedra de ponta que quase cegara Badu em uma das muitas brigas que tiveram. A lasca de madeira com as iniciais de ambos talhadas, recebida em uma das muitas ocasiões em que fizeram as pazes. Um pedaço de osso ganhador, um botão de camisa, um anel de palha. Recordos que foram concebidos por eles juntos e que, feitas as oferendas certas, poderiam mantê-los juntos no novo mundo para onde partiam. Ainda que as sinhás dissessem que pretos não entravam no paraíso dos brancos, haveria um jeito.
Na manhã do dia anterior, data do casamento, o canto da mãe-da-lua ressoou, vindo do quarto de D. Domingos, e os de casa estranharam ouvi-lo àquela hora. Arrombaram a porta no instante em que Badu encostava a lâmina do chanfalho nas próprias costelas. Não o deixaram prosseguir. Levaram-no ao pelourinho, onde o capataz, e o sinhô pai do noivo, e o sinhô pai da noiva, e os irmãos, os primos e os cunhados, e até mesmo algumas das sinhás revezaram-se, ao longo de todo o dia e de toda a noite, no chicote, nos ferros, nos jorros de vinagre e sal. Quando se enfastiavam ou se angustiavam demasiado com as rezas do velório, lá estava Badu, atado, à sua disposição: o instrumento que lhes reavia as forças.
Criam morto o assassino quando o ataúde deixou a casa-grande na alvorada, rumo à capela. Talvez estivesse, diriam alguns mais tarde. Pode que as inquices o ressuscitaram em consideração ao devoto, para lhe dar a chance de terminar o que começara. Em vão foi a limpeza da face de D. Domingos, pois agora, que o colar de couro estava em volta do pescoço dos dois, a estreiteza imposta aos movimentos de Badu levou a que os rostos de ambos se unissem, os lábios do branco roçando a bochecha do preto, a quentura do sangue contra o frio da morte. O frio vencia. Badu sorriu para os olhos que o viam e tentou explicar tudo enquanto havia calor em si. Ninguém entendeu o que disse, porque a palavra se fez vapor, fez-se expiro.
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