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O escritor Julio Cortázar, ao escrever uma carta para seu amigo que ficara em Buenos Aires, interrompe por um momento a própria argumentação e confessa: “Se no ato de provar que uma coisa é A ou B irrompe de repente uma angústia terrível e uma sensação de descrença total no que se afirmou, isso se deve ao fato de que todo homem inteligente e sensível sabe que uma prova é sempre outra coisa”. Se alguém aí sente o mesmo depois de enviar um e-mail ou uma mensagem, levante a vista e alivie-se com a apreensão compartilhada. Falo aqui de nós que procuramos nos distrair mesmo depois de um torpedo, porque não acreditamos no ideal da comunicação direta, em que as palavras e os sentidos seriam universais, e muito torcemos para sermos entendidos.
O caso é que você e eu nascemos em lugares diferentes, em anos diferentes. Fomos criados cada qual em sua família, frequentamos outras escolas, brincamos com outros amigos de bairro, viajamos para cidades inéditas, nos doamos a músicas, livros e filmes com tonalidades particulares, e enquanto Beatles significa almoço em família no domingo para você, para mim representa a despedida de um amigo que se foi. E assim eu ouvi gírias que você não escutou, tenho elementos de humor que não faz tanto sentido fora de um grupo com quem vivi muito, e para a palavra “interesse” a sua mãe deu o tom repetido da motivação, da virtude e da iniciativa, enquanto o meu pai preferiu emprega-lo para a mesquinhez, a ação escusa, o subliminar. Aí você chega para mim, alegre, e pergunta: “Você tem interesse de ir hoje pra um show cover dos Beatles?”. Os meus lábios se entreabrem, as pálpebras caem: hesito. E você, sem ter os elementos com que poderia cogitar o motivo, só pode usar os próprios: “É, acho que ele não vai muito com minha cara”.
A questão que mais se repete depois de “Como vai a família?” e “Alguém viu a chave?” é “O que será que ele/ela quis dizer com isso?”. Uma frase então dita em um sentido X, e o interlocutor ao tenta ver os seus sentidos ocultos encontra Y, logo o primeiro replicará com W e o outro vira a mesa gritando Z. Conta-se que Exu, entidade da comunicação, adoraria brincar com isso, ao usar um chapéu com duas cores, para que quem o visse de um lado afirmasse ser todo o chapéu de uma cor e para quem estivesse do outro insistisse no contrário. Achando que nos livraríamos mais da travessura, apelamos para a interpretação e a pressuposição, que mais provoca risos no orixá. A interpretação sempre diz mais do universo próprio de quem interpreta um fato, e a pressuposição se vale da ideia de regras gerais que se pensa haver em todo mundo. Não à toa Milan Kundera chegou a imaginar em A Insustentável Leveza do Ser um dicionário próprio entre dois amantes, para que superassem a mágoa injustificada, o silêncio preenchido de concepções, a confiança nos arquétipos gerais. Em outras palavras, para que os dois não se comunicassem apenas pelas fachadas das palavras, mas pelos quartos e banheiros do lar dos seus significados próprios.
Assim, na última aula teórica de direção defensiva, o instrutor, cansado de mostrar gente despedaçada, aconselhou: “Se você for ultrapassar um carro, dê uma buzinada antes. Se você for passar de faixa, realmente ligue o pisca. E ao querer parar no sinal amarelo, demonstre a sua intenção para aquele que está logo atrás”. E em um instante que ele olhou diretamente para mim, a sua fala se completou: “Na dúvida, sempre sinalize o que puder. Você não sabe quem está dentro do outro carro”. Eu balancei a cabeça devagar, depois a pendi de um lado para o outro com a testa espremida, e enfim sorri.
Saulo Dourado escreve às segundas-feiras, quinzenalmente