Mocota estava que só era pele e osso, eu e Dundinho sabia, quer dizer, o mundo todo sabia, não tinha como não ver, ô dó!
quando ela apontou os olhos pra nós, cá na beira da estrada, com aquela mancha enorme no meio da testa, uma mancha preta, no formato da África (tinha aprendido na escola, aula de Geografia, mapa-múndi), quando ela apontou os olhos pra nós, Mocota, a nossa amada Vaca, preta e branca, a gente se entreolhou, eu e Dundinho, vendo que o relógio tava comendo o nosso tempo que ainda sobrava pra amar Mocota
a gente não disse nada, também não precisava: a seca tinha mais voz que todos nós juntos. Eu pensei assim: todos nós, todos os nós que a gente tem que desatar pra viver sem água, ou quase seco de água, e ainda ter que cuidar de vaca porque ela dá leite, e mais ainda porque dá um alento no peito porque é vida no meio de tanta morte
mas tava pele e osso a coitada, as pata da frente tremelicando, quase dobrando, e a gente tangendo Mocota pela beira do asfalto porque ali ainda tinha um pouquinho de mato nem tão seco, ah!, coração seco de quem tem que mandar chuva e só manda quando quer
passou um carro, passou uma rural, depois passou uma bicicleta e ninguém sentia a dor que eu tinha no peito porque Mocota tava sem brilho no olho já, caminhando não sei com que força, até mesmo eu já sentia as vista anuviando com aquele sol lindo grande mas matador, sol-matador-de-peixeira-em-punho
Dundinho disse assim e eu morri: acho que Mocota tá chamando a gente pra dar um beijo nela, como a gente faz sempre que ela muge de sede
fechei os olhos e chorei
Mocota dobrava as patas da frente
perto da cerca de arame farpado, um urubu grande, senhor de si, sorria, amigo do tempo
Carmezim escreve às quartas-feiras
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