A fama vai para os policiais, governantes, juízes e até mesmo para os norte-americanos, mas os verdadeiros mantenedores da ordem são os ficcionistas. A partir do ponto em que se garante um espaço para o que é fabulação, legitima-se por tabela a realidade de todo o resto. As fronteiras dos países não ficam apenas protegidas pelos exércitos, são também guardadas pela não-ficção, pela segurança de se existir enquanto estatuto. O ufanismo, a ideologia, o vestibular, a imprensa, as dietas, o indivíduo, o terrorismo, a simetria, os preceitos materiais das religiões, as fórmulas de ganho – estão todos inscritos no que deve ser, pois se o ficcional é uma exceção devidamente delimitada, o real é a regra.
São os ficcionistas que permitem o sono tranquilo. Não vivemos em um sonho dentro de um sonho dentro de um sonho, sonhado por alguém que cria pessoas ao dormir, pois isto já é um conto de Jorge Luis Borges. Com certeza o rei está vestido, e com pompa, já que o nu foi uma intuição de Andersen, ao escutar histórias do folclore. Temos a segurança de que não acordaremos em forma de inseto, nem de que assassinaremos a velha usurária somente por nos acreditarmos homens extraordinários. Definitivamente não correremos atrás de uma cadela com nome de peixe para fazê-la de jantar a toda família. Como o aposentado que se livra da morte ao prever todas as possibilidades de por ela ser encontrado, são afastadas as invasões da fábula na realidade quando já existe uma zona para a ficção ser ficção.
Cada membro da cidadania deve o gesto de agradecimento aos escritores, por lhe ser permitida a plena confiança nas leis, nos médicos e no dinheiro, que não se torna assim um conjunto de números, nem retângulos de papel. É preciso exaltar estes gênios e gênias que afincam os seus dias a criar personagens e tramas imaginárias; não apenas por promoverem encantamentos e purificações, mas por nos fazerem sentir em alívio que a história da humanidade não é a mais completa história da literatura. Nietzsche se equivocou ao dizer que somos “um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos” ou “uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo, sólidas, canônicas e obrigatórias”. Já existe um campo de foco para as metáforas, para as imagens poéticas e nele tais objetos de linguagem podem ser conduzidos ao patamar mais sublime.
Na mesma linha, os atores asseguram que somente no teatro se encena, e por sua vez o teatro confere que a cidade não é um cenário. Com o cinema, a caminhada na rua só pode ser um acontecimento, uma vez que não há nas calçadas uma câmera e uma trilha sonora. Eis que somos todos salvos: uma vez que não há plateia, nem público e nem leitores para o que fazemos dia à noite, noite adentro, todo fato é concreto, toda meta é justificável e toda telha estalando no escuro é apenas um gato.
Saulo Dourado é o convidado especial deste domingo. Ricardo Sangiovanni volta na próxima semana
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