Hoje o inimigo veio me espreitar
Armou tocaia lá na curva do rio
Trouxe um porrete a mó de me quebrar,
Mas eu não quebro porque sou macio
CHICO

Quando percebi, já tinha derramado todo o suco na camisa. Suco de tomate, vermelhão, saboroso, perdido por causa do tapa que tomei bem no meio das costas. Amigo não é pra essas coisas, eu pensei, e quando virei pra falar com O Gago, percebi que a conversa não ia durar muito. Duas palavrinhas, eu disse, só duas palavrinhas, Gago, e você vai ver que o que fiz tem explicação.

Juro que quase me caguei só por ver que ele tinha os pelos do antebraço arrepiados, eriçados apontando pro céu, como se um fio de 220V viesse não sei de onde e passasse pelo corpo inteiro, arrebentando a pele. Ele estava ali, um arco e flecha humano, prontinho pra acertar a minha boca e estilhaçar o meu juízo.

– Você é o inimigo.

– Eeeeeu?, falei com cinismo e medo. Como cê pode dizer uma coisa dessas? O que fiz, fiz por amor.

Ele riu pra caralho.

Era ele rindo e eu sentindo o suor descer da minha nuca até secar na cueca.

– O que fiz, fiz por amor, um amor desesperadamente vermelho como esse suco de tomate que você acabou de fazer com que eu derrubasse na minha camisa. Mas acho primeiro que você deveria relaxar, tomar uma dose de algo, respirar no rara, parar pra pensar. Por que eu mataria Dentinho?

– Simplesmente porque você quer me ver pelas costas.

Não sentei no balcão do boteco só de onda. Eu sabia que O Gago ia chegar pra tirar satisfação e eu tinha tudo pra acabar no bico do corvo, feito minhoca ou qualquer bichinho que corvo come, mas se não fosse assim, na exposição, feito carne à mostra, talvez eu nem tivesse tempo de envergar e depois voltar. Talvez quebrasse logo de vez.

– Você não entende o que é devoção, né, Gago? Devoto é cego, irmão. Eu enceguerei, como dizia minha querida avó (puxei pela avó porque sabia que o doutorzinho ali na minha frente, o ódio transbordando, tinha sido criado pela avó), quando percebi que Dentinho estava de sacanagem com você. Fazendo conta errada, tirando da boca e colocando no bolso dele sem você perceber. Fiz por amor, Gago, por devoção cega, não pensei muito, não. Foi doído ver o que vi e não me manifestar.

– E precisava matar o cara? Não podia dar a real pra mim pra que eu resolvesse o que fazer?

Entupi, fiquei caladão na hora. Se eu dissesse a verdade antes de meter chumbo no cidadão, era capaz que Dita metesse os pés pelas mãos e resolvesse ficar com Dentinho, coisa que eu não queria. Dita até podia ser do Gago, mas depois dele ela era só minha. Parceria sem o parceiro saber. O que é que aquele treta do Dentinho tinha que vir morar nessa história de nós três?

-Não, parceiro, não dava. Resolvi eu mesmo. Agora tá tudo na maciota. Nós dois, a boca a todo vapor, o amor, a devoção…

O Gago acatou. E eu me senti macio como nunca. Envergando sem quebrar.

Carmezim escreve às quartas