Sou um sujeito com algumas esquisitices. Não me considero excêntrico, porém tenho noção que possuo manias que fogem ao conceito de normalidade (não achei palavra melhor, vai essa mesmo) socialmente aceito o que, por consequência, causa estranhamento à maioria das pessoas.
Tento adaptar algumas dessas extravagâncias, na eterna luta de equilibrar o egoísmo que exacerba do meu ser e a necessidade de inclusão na coletividade cotidiana. Mas não tenciono abrir mão de minhas idiossincrasias afinal “nunca se sabe qual pilastra que sustenta o edifício inteiro” – conforme li no mural de outrem em uma das milhares de citações atribuídas a Clarice Lispector pelo oráculo Zuckberguiano.
E se esse desajuste me apraz e entretém, melhor ainda. Reler livros que gosto e assistir novamente filmes que achei interessantes é uma mania deleitosa. Sei qual será o final, o tortuoso caminho do enredo, mas a cada releitura descubro um aspecto aqui ou acolá que passara despercebido antes, e que agora enriquece ainda mais a fruição. Um eterno descobrir que deve ser o combustível daqueles que se enamoram cada vez mais e resistem aos dissabores do tempo. Ineditismo não garante interesse e uma obra vigorosa sempre tem aspectos a serem desvendados.
Numa dessas madrugadas insones (mais frequentes do que eu gostaria), zapeando canais na TV, revejo a primeira versão de Total Recall – clássico da ficção científica estrelado por Schwazenegger e que foi refilmado este ano – o que reacende a minha paixão juvenil por filmes do gênero. Ao lado de Blade Runner e da trilogia Back To The Future são películas que marcaram as primeiras impressões que tive sobre a sétima arte. E que também desenvolveram a expectativa para o futuro que se avizinhava – o próximo milênio, mas conhecido hoje como AGORA.
Carros voadores, tênis com cadarços automáticos, guarda-chuvas com cabos de xenon, mutações genéticas, androides, humanoides, exploração de outros planetas, colônias alienígenas, corporações sinistras, armas a laser… Era o cenário imaginado pele ficção científica dos anos 80 para o mundo de hoje. Sim, de hoje, afinal o cenário foi imaginado em 2015 [Back to the Future], 2018 [Blade Runner] e 2084 [Total Recall].
A não ser que a Curiosity tenha avanços impensáveis que proporcionem a colonização acelerada do Planeta Vermelho em apenas 70 anos, a verdade é que, como instrumento de previsão, os filmes falharam lamentavelmente. O que é um detalhe mínimo. O ângulo mais irrelevante desses clássicos é justamente esse cenário, futurista meio noir, muitas vezes kitsch embalado por trilhas compostas em keytar e sintetizadores. Emoldura mais os anos 80 que o futuro [hoje sabemos].
Há um aspecto que interliga e entrelaça esses enredos, que permanece muitas vezes obnubilado pela estética e outras questões coadjuvantes: a memória. No Vingador do Futuro (mais um péssimo título brasileiro) todas as ações são desencadeadas pelo desejo de um implante de lembranças de férias. Daí vão derivar outras questões, como a possibilidade de transplante de outra personalidade em um mesmo corpo, e os conflitos desembocam na missiva moral que redime o protagonista: não importa o passado, você é o que você faz. Memórias são um suporte, as ações são determinantes.
Na trilogia de Robert Zemeckis, os saltos temporais que servem para “consertar” os danos causados por interferências na linha do tempo disfarçam o verdadeiro objetivo de Marty McFly: editar a memória emocional de sua linhagem. Deixar de ser “covarde” para enfrentar (e vencer) o antagonista de sua família Biff Tanen. Uma forma não-convencional de justificar a incapacidade do protagonista de ser um vencedor – na ótica american way of life – atribuindo a situação a uma espécie de carma familiar. Trafegar no futuro, e no passado, para reparar o presente. A memória passa a ser determinista, para fugir dela é preciso quebrar a cadeia de acontecimentos lá atrás. O caminho da redenção está no legado: “Para onde vamos não precisamos de estradas”, ensina o guru Doc Emmet Brown.
No futuro caótico da torrencial Los Angeles de Blade Runner, a Terra parece um local tão inóspito quanto os planetas colonizados pela raça humana. Entretanto é o local ideal para que os Replicantes (androides à semelhança do homem) infiltrem-se em busca daquilo que lhes foi negado: humanidade. Essa vertiginosa busca acaba potencializada quando os androides mais avançados recebem implantes de memória para forjar sua condição humanoide. Como efeito colateral, desenvolvem sentimentos, dilemas e até angústias tipicamente terrenas como o conceito de mortalidade. A memória passa a ser a chave ignitora para tais questões. O filme implica em várias outras questões, mas fica claro como o fardo de possuir recordações não pode simplesmente ser contestado com um teste Voight-Kampff positivo. A memória aqui novamente é refutada, desta vez como suporte para a condição humana, vista como algo não essencial, já que os androides mostram-se mais humanos e afetuosos que os nativos.
E por qual motivo então a ficção científica dos anos 80 estaria tão empenhada em debruçar-se sobre o protagonismo da memória? Desculpe-me se você leu até aqui em busca desta resposta. Não a tenho. Mas conjecturo que seja uma forma de alertar para que valorizemos nossas heranças, uma forma oblíqua de chamar atenção para o fato de que nada adianta projetar o futuro se não estivermos dispostos a não deixar perecer nossas experiências passadas. Como no poema final de Blade Runner, onde o replicante Roy Batty [Rutger Hauer] declama:
“Eu vi coisas que vocês nunca acreditariam
Naves de ataque na borda de Orion
Vi a luz do farol cintilar no escuro, na comporta de Tannhauser…
Todos esse momentos se perderão no tempo… Como lágrimas na chuva
Tempo de morrer”
São as nossas lembranças, que vivenciamos e proporcionamos, que nos definem. Não esqueçam isso.
Alex Rolim devaneia às quintas-feiras
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