O biombo dividia a casa ao meio.
Do lado direito de quem entrava descansava uma vitrola, dois bolachões de jazz, um aparador amarelo e dois porta-retratos sem retratos. Um colchão fino, dois travesseiros com pequenos rasgões. O tempo era senhor.
D’outro lado tinha vazio. Era um espaço destinado ao eco, às almas, ao papel em branco, ao vento. Era o lugar onde o nada repousava, sonolento.
Quando Raoni decidiu confeccionar o biombo com as próprias mãos, pensava em reservar o espaço vazio para desaguar as dores. Quando pensava na dor da ausência, olhava de canto de olho para o lado esquerdo, forçava um pensamento colorido, desanuviava.
Ela costumava fazer as unhas ali, as pernas dobradas uma sobre a outra. O cabelo preso desnudando a nuca. Quando sumiu no mundo, o lado esquerdo mudou em nada. Tinha cheiro, desenho, carinho dela. Houve quem perguntasse “por que um lado da casa vazio” e Raoni, com um sorriso entre os dentes, “vazio pra você”.
Com o tempo – ah! o tempo – as quinas e ângulos do lado esquerdo perderam a força. Viraram ângulos retos, sisudos, desalmados. Pra piorar, Raoni havia colocado uma cadeira por ali.
Cadeira vazia num canto vazio outrora ocupado é foda.
Numa sexta-feira com ares incipientes de mudança, Raoni abriu a janela e duzentas e vinte e três borboletas amarelas se instalaram na casa.
Todas do lado esquerdo.
Carmezim escreve às quartas-feiras
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