era pra eu ter te escrito esse email há umas duas semanas, quando de fato aconteceu alguma coisa no meu coração e pensei em partilhar isso com você, que talvez possa entender. acabei não escrevendo, depois viajei em seguida e hoje li seu ultimo texto no purgatório e fiquei feliz de não ter escrito. talvez agora faça até mais sentido.
as cidades, o pensamento sobre as cidades, são assuntos que sempre me instigam, nunca me cansam. por isso volto a eles.
a coisa aconteceu no meu coração num sábado de manhã, manhã de sol. a coisa pode ter acontecido quando eu estava voltando de um agradável café da manhã num restaurante de comida tipica que fica ali na rua do meio, no rio vermelho. acho que aconteceu quando o carro estava fazendo aquela descida perto do cristo, que mostra aquela vista do farol da barra e da praia colorida cheia de gente. a coisa se repetiu depois, quando eu estava esperando um ônibus no porto da barra, e ainda depois, quando o micro-ônibus subia o corredor da vitoria, em direção ao campo grande, onde desci e comprei uma água de coco antes de ir pro escritório. neste momento, entendi perfeitamente o que o caetano quis dizer, mesmo sem nunca ter eu mesma cruzado a ipiranga e av. são joão.
a coisa permaneceu no meu coração, quando cheguei na alemanha. e tinha até esquecido um pouco dela, em meio a tantas novas paisagens e ares, quando encontrei um exemplar do livro “Bahia de todos os santos:guia das ruas e mistérios da cidade do Salvador”, de Jorge Amado. Não conhecia e, apesar de certa desconfiança (que não sei bem de onde vem), li boas partes do livro, com prazer, entendendo melhor aquela coisa que aconteceu no meu coração. No livro, reencontrei a carta de Caymmi escreveu a Amado, que Tatiana Mendonça publicou no Purgatório e que muito me tocou. Só isso já valeria a leitura. Mas teve muito mais. Lendo, entendi muito sobre a construção mítica da Bahia, sobre seus personagens e percebi que é uma imensa bobagem dizer que Amado forjou essa Bahia em sua prosa. Ontem ainda li o texto de Alex Rolim, sobre Amado e Nelson e concordei com ele. Tudo que Amado descreve no livro é verdade, existiu, existe. Um ponto de vista, mesmo que reduzido, não deixa de mostrar uma parte da verdade.
a coisa pode ser chamada de enamoramento, ou até de paixão, caso queira. é aquele momento em que olhamos pela milésima vez a pessoa amada e num átimo lembramos porque somos apaixonados por ela. apesar de todos os defeitos que ela possui e da falta de encanto que o dia a dia acaba por trazer. em algum momento daquele sábado olhei assim para Salvador e lembrei porque a amo. Lembrei da nossa conversa, sobre o sentimento de se sentir em casa e ontem, ao voltar para a cidade, mesmo que ausente por um curto periodo, senti um pouco isso, como me sinto em casa em Salvador. Não escolhi vir para cá, há quase 14 anos atrás. Mas hoje sinto que a cidade me escolheu para viver em mim, tanto quanto eu a escolhi para viver nela.
Voltei de viagem há pouco e já relembrei e vi também muitas coisas que não amo em nossa cidade, coisas que nenhum olhar romântico pode não ver, nenhuma prosa pode florear. Muita pobreza, muita violência e todas essas coisas que vendem jornais. Pode ser que aquela coisa aconteça só daqui há 10 anos de novo no meu coração. Acho que no fim das contas, a coisa sempre permanece lá e se acende de vez em quando. Tanto se fala mal de nossa cidade hoje, de forma tão desiludida, tantos estão ausentes, são tao escassas as perspectivas, que por um momento me julguei demais boba e naif, tendo estes sentimentos todos e pensando na Bahia de Amado. Mas afinal, que amor não é bobo e naif?
Fiquei feliz de ver que você está bem em sua nova cidade. Espero que assim permaneça. Ou melhor, que sempre melhore. Que um dia cruze alguma avenida nessa grande São Paulo e de repente aconteça algo em seu coração.
Mas apareça aqui de vez em quando, pra trazer sua coisa e seu coração para passearem sob o sol da Bahia.
Beth Ponte é a convidada especial desta terça
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