O Purgatório de hoje pára as rotativas para publicar um relato do convidado Eduardo Luedy. Camilla Costa, nossa titular dos sábados, volta na semana que vem.
Tarde de hoje, 31 de agosto
No corredor da Vitória, onde moro, no terceiro andar que dá de frente para a avenida Sete, escuto o barulho de gente gritando. Escuto por entre a balbúrdia “ele roubou, ele roubou”, “foi ele sim!”, “pega!”, “pega, segura!”
Um rapaz negro, muito magro, passa a ser espancado por dois rapazes, que o imobilizam. Estes dois rapazes, parecendo muito ávidos em proteger a sociedade, bancam os justiceiros e não só imobilizam o rapaz como davam nele muita pancada. Vi um deles socando-o no rosto, como nos filmes de ação que a gente vê na tevê. Este era o mais forte, com pinta de rato de academia – forte, marombado. Ele chegou a usar seu próprio capacete para bater no suposto ladrão. Da minha janela eu olhava impotente para a barbárie e via como as pessoas em volta pareciam aprovar tudo aquilo. Eles estavam bem defronte do prédio do Ministério Público do Trabalho. Na hora pensei, cadê os seguranças do Ministério do Trabalho? Eles vão pelo menos fazer com que parem de bater no rapaz – que já tava imobilizado! Que nada, de minha janela eu via eles, os seguranças, do lado de dentro, assistindo a tudo por trás do gradeado que protege o prédio.
Foi na cena do capacete sendo usado contra a cabeça do rapaz que eu resolvi agir como cidadão. Liguei primeiro para 190. Nada, só dava sinal de ocupado. Desci, então, correndo as escadas do meu prédio e fui ligeiro procurar policiais que deveriam estar no módulo policial que fica no largo da Vitória. Cheguei lá e não vi nem policiais e nem módulo algum. Descobri que lá não tem mais módulo policial.
Bem, sem policiais, sem módulo, sem nada, me sentindo um palerma por ter perdido tempo indo até lá, volto correndo para o local onde continuavam a espancar o rapaz.
Intercedi pelo rapaz, indo direto no marombado: “ei, páre com isso! quem te dá o direito de ficar batendo assim em alguém?”. A pergunta causou-lhe algum espanto, porque ele parou o que estava fazendo, olhou para mim e disse algo como “quem é você, que tá chegando agora, e que não sabe o que está acontecendo?” Eu disse que estava vendo tudo da janela do meu prédio e que ele não podia ficar batendo no rapaz etc etc.
As pessoas em volta intercediam pelo marombado: “mas ele roubou, senhor”, diziam e tom condescendente para com a minha revolta. Outros diziam “você vai defender esse daí? quando esse vagabundo te roubar quero ver você defender ele”. Um sujeito, com olhos injetados de ódio, se aproximou bem de mim e disse “tem é que cortar a cabeça!”.
Mas a minha entrada em cena causou certo constrangimento entre os dois “justiceiros”. Pelo menos o espancamento cessou. Ficaram “apenas” os impropérios, que eram despejados por sobre o rapaz, como se muita raiva contida tivesse finalmente encontrado sua razão de ser: “fica aí, seu puto! Seu viado!”.
Ele continuava imobilizado, sua resistência era vencida com certa facilidade por um dos justiceiros. O marombado, revoltado com a minha bronca, chegou a me dizer, “tá com pena dele, leve ele pra sua casa!”, ao que prontamente respondi, “levo sim, soltem ele que eu levo”. Os seguranças, até então inertes, inúteis, vestidos com seus coletes, se aproximaram de mim, ainda por trás do gradeado: “mas ele roubou, senhor”. Eu, já irritado retruquei: “e quem dá o direito de espancarem ele assim?, por que vocês não fazem nada? por que permitem que esses caras fiquem espancando ele?”. Eles se limitaram a dizer que não podiam fazer nada e repetiam “ele roubou a corrente da moça, senhor…”
Nesta altura algumas pessoas já me olhavam com certa condescendência. Uma moça se aproximou de mim, “meu senhor, você já fez a sua parte, a polícia está vindo, não há mais o que fazer aqui, por favor, se acalme”. Foi quando percebi que estava de fato muito exaltado.
Um senhor negro se solidarizou com o rapaz e tentou interceder também, bateu boca com o marombado, disse que não tava certo bater no rapaz. Mas um outro, branco, com pinta de classe média bem alimentada e com roupas novas, passou por entre o cerco formado por mim, o brucutu marombado, o segundo justiceiro e o senhor negro e foi direto ao ponto, se agachou e olhou nos olhos do rapaz que se encontrava no chão, derrotado, ainda seguro pela camiseta na altura do pescoço (e pelo marombado que se limitava a pisar-lhe a perna neste momento): “seu puto, agora você vai ver o que é bom pra tosse! Você agora vai pensar duas vezes antes de roubar alguém! Você vai apanhar é da polícia, seu viado!”.
Não me interessava descobrir se o rapaz tinha ou não “culpa no cartório”, mas que diabos, quem somos nós para julgar e condenar assim? Ele me olhava e suplicava: “não fiz nada, não roubei ninguém!” Num certo momento, ele percebeu que a minha presença lhe dava alguma proteção. Ele me olhava e dizia, “não fiz nada!”
A polícia chegou. Estacionou a viatura. Um dos policiais, também negro, já veio com as algemas para prender o rapaz. Nenhuma pergunta foi feita, nada foi apurado. Apenas o brucutu marombado conversava com os policiais. Eu, impertinente, me aproximei e perguntei aos policiais, “e o que acontece com esse rapaz que tava aqui batendo nele?”. Pura provocação, sabia da inutilidade daquela minha participação – ora, era óbvio que o suposto ladrão iria apanhar ainda mais na delegacia. A tortura é prática contumaz, todos sabemos disso.
Já no camburão, algemado, vejo o rapaz ser levado embora. O marombado vem perto de mim, ameaçadoramente, dedo em riste, “não gostou, venha dar seu jeito!”, e me lança alguns insultos. Meu irmão chega e tenta me defender de uma possível agressão, se interpondo entre ele e eu. O segundo justiceiro tenta se justificar. Não lhe dou mais ouvidos. A moça preocupada me roga, “moço, vá pra casa”.
Termina tudo e eu me sinto um palerma. Por que não abordei os policiais para lhes dizer que queria denunciar o brucutu? Enquanto ia escrevendo este relato, pensei em como acabamos sendo cúmplices da violência contra os mais pobres. A polícia de Salvador promove um verdadeiro extermínio contra as pessoas pobres e de cor. Os assassinatos de negros, aqui na Bahia superam em 439,8% os de brancos (ver a matéria da Carta Capital, “Ecos da escravidão”, de março de 2011) e grande parte destes assassinatos tem sido denunciada por resultarem de ações da polícia e de grupos de extermínio (que contam com elementos da própria polícia).
O rapaz negro, assim como o policial que o algemou sem procurar saber de nada do que havia ocorrido, se lhe faltaram com os direitos, se lhe espancaram, se houve de fato algum roubo etc. Bastava olhar para o rapaz caído no chão, verificar-lhe o rosto miserável, as roupas rotas, já se encontrava descalço também, quem era ele senão mais um marginal? O brucutu marombado, feliz por sua superioridade física e moral, era o herói que ía embora em sua moto, impune e com a sensação de dever cumprido.
Parece que tudo se resume a isso: mais um rapaz, preto, pobre, miserável, a ameaça da sociedade. Que lhe cortem a cabeça, que lhe soquem a face, que lhe xinguem. Somos todos cúmplices.
3 comentários
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setembro 1, 2012 11:46 am às 11:46
Danilo Fraga Dantas
Eu presenciei algo parecido no Porto da Barra semana passada e fiquei muito assustado. Não sei se isso ficou mais comum nos últimos anos., mas parece mais comum do que quando eu morava aqui (ou então estou generalizando de uma amostra pequena).
Porém
(1) Não sei se, nesse caso específico, a cor ou a classe social são fatores relevantes. Que negros são mais assassinados que brancos, isso é fato, mas acho que esse caso diz respeito a uma falta de noção geral das leis e descrença em relação a seu cumprimento. Ou as pessoas querem bater nas outras e tomam isso como oportunidade.
(2) Também não concordo com o \”quem somos nós para julgar\”. Acho que Todo mundo é livre para julgar (ações, opiniões, etc) do modo que achar mais razoável – esse julgamento pode estar certo ou errado, pode ser cuidadoso ou precipitado, etc. O problema no caso não é as pessoas terem tomado o rapaz como ladrão, mas sim o fato delas cometerem um crime (de agressão).
setembro 4, 2012 10:37 pm às 22:37
Antônio
Achei seu texto confuso pra falar das “formas de dominação”, acabou criando uma revelação, a seu respeito, no discurso e na ação: o seu apartamento no Corredor da Vitoria, o miserável sendo espancado pela sociedade, o policial negro, o marombado [o cara era forte é?] o play boy com roupas novas…tudo isso são signos de quem quer dizer mas se atrapalhou na própria escrita para dizer o óbvio. Não sei quem foi o “justiceiro” nesta história toda…só sei que antes de pensar no sujeito como marginal é necessário pensar na marginalidade em que ele vive por nós das nossas janelas do 3º a cobertura dos prédios de luxo. Sim, somos todos cúmplices.
setembro 4, 2012 11:33 pm às 23:33
Eduardo Luedy
Não creio que meu texto esteja tão confuso quanto o seu comentário… Mas vamos lá: (1) em momento algum pensei no marginal como alguém que existe fora de qualquer contexto social. Se não me detive mais nele, foi por que o que me chocava era a destituição quase que total de sua dimensão humana – só isto poderia explicar o ódio e a selvageria a qual ele era submetido pelos rapazes bem alimentados. Em outros termos, mais que me deter na descrição de sua condição social e nas possíveis razões para que ele estivesse naquela situação (caso ele tivesse de fato cometido o roubo). Pois bem, era a selvageria perpetrada pelos “cidadãos de bem” – e que contava com a anuência das pessoas em volta – que me interessava discutir. (2) Não estava em questão saber quem era o “justiceiro”. Ao contrário, estava sendo irônico ao tratar dos reais agressores como tais. E, por fim, (3) o fato de morar no corredor da vitória (não moro numa cobertura) não me faz insensível às desigualdades sociais. De todo modo, fico contente que você concorde comigo: somos todos cúmplices. Só não me vi tão atrapalhado assim ao “dizer o óbvio”.