Não é lenda, não. Se veio de Tia Zenaide é difícil duvidar. Católica fervorosa, temente a Nossa Senhora e a Deus, avessa a mentiras, natural de Euclides da Cunha (“Cumbe”, para os íntimos), sertão da Bahia. Quando mexe no baú da memória não tira de lá estória boba, não. Ainda mais em se tratando de amor. E dor.

O que ouvi na voz melodiosa de “Daide” foi uma história do que acontece desde quando o homem é homem e o sentimento de querer o outro ultrapassa as barreiras da normalidade. Sabe quando a dor de amor/amar passa da sensação psicológica, emotiva, para uma questão física? É quando o sofrimento não cabe no corpo, não diminui com o choro, passar a doer de verdade, fisicamente.

Conta Daide que era conhecido o querer de uma senhora por um cidadão na Rua da Usina, em Euclides da Cunha, nos idos dos anos 40. O sofrimento – fantasma pegajoso que costuma nos assombrar – passeava no rosto da mulher, carente do amor que não era correspondido. Anos a fio foi assim. Era sabido por todos.

Quando o limite suportável da dor esvaiu-se, Waldick Soriano entrou em ação. A música dele, claro. Tia Zenaide conta que ao cair de uma tarde quente, ouviu-se um canto doído, rasgado. O homem havia sumido.

“Quem eu quero não me quer / quem me quer mandei embora/ é por isso que não sei / o que será de mim agora”. Euclidenses da Rua da Usina não puderam acreditar no que viam. A música saía gritada da garganta da mulher. “No meu quarto de saudade / solidão mora comigo / por onde anda quem me quer / quem não me quer onde andarás”.

O corpo da mulher ardia em fogo. As labaredas comiam a pele. Ela gritava e cantava. Conta Daide que a mulher vagou, vagou, caiu. Não sem antes completar: “Não sou capaz de ser feliz / no braço de um amor qualquer / Ah! Se uma fosse a outra / quem eu amo tanto não me quer”. A dor havia brotado pra fora do corpo.

 

Carmezim escreve às quartas-feiras