* Texto publicado no dia 8 de setembro de 2011. A equipe de O Purgatório volta das férias amanhã.
Pedro, Pedro, teu povo veio, Dão Pedro – e te porta gratidão. Teu povo cordato e bom vem para louvar teu grito, oh Pedro, e jamais discutir-lhe a razão. É de teu povo que está repleta a esplanada sob a sombra de tua espada erguida às margens do riacho, Pedro; é ele que faz fila para entrar no museu que guarda as relíquias de teu Império; que gargalha e reparte o pão sobre a grama do parque, sob esse céu generoso, esse sol de feriado quente que lhes providenciou teu homônimo, Pedro, o São.
Porque, Pedro, repara: teu povo é mais sábio do que pensas. É cônscio de que, não fosse teu grito, não haveria esplanada gramada, nem parque, nem piquenique. Nem museu, nem relíquias – tampouco reino haveria. Sem teu grito, Pedro, não haveria feriado – e sem tudo isso, a fila, distração desse povo brioso, não teria razão de ser. E sem a fila… ah, sem a fila, Pedro, como seria triste o dia desse teu povo.
Pois, se acaso não sabias, a fila para entrar no palacete que nunca foi teu e que fizeram de museu dobra a esquina no 7 de setembro. Pedro: o povo vem conhecer tua grandeza! E saúda-te, todo reverencioso, ao ver-te soberano gritando independência ou morte no quadro que outro homônimo teu, o Américo de Figueiredo e Mello, pintou em 1888 – quando, a propósito, já não eras mais nem vivo, quanto menos Primeiro; há muito que já eras Quarto, e d’Além Mar. Pintado, não podes ver – estás de costas -, mas teu povo também está no quadro, Pedro. E te observa, no olhar bom-selvagem do sujismundo que toca quatro cabeças de rês, desavisado; no olhar matuto do mascate que masca fumo, desanimado. Cento e oitenta e nove anos passaram, Pedro, e teu povo ainda te olha com o mesmo olhar.
Mas se esse teu povo simplório vai ao museu, é porque quer conhecer da própria História, Pedro. A ponto de se deixar encantar ao ver teu dedo em riste pintado no convés da Fragata União, arremedo de almirante Nelson em simulacro de Trafalgar. A ponto de se admirar da loirice genuinamente tupi-guarani (ou seria nagô?) dos cachos defuntos da Princesa Izabel. E dos da Imperatriz Leopoldina, e dos de D. Amélia Leuchtenberg, e dos de D. Teresa Cristina – todas elas loiras, soberanas nossas.
Teu povo não é lá muito de inquirir, Pedro, mas ocupa cada centímetro de teu museu malcheiroso – aliás, para tua informação, os sanitários do palacete estão interditados, viu, Pedro? A entrada é de graça e há tanto espaço vazio quanto há no Prado ou no Louvre em semelhante condição. Teu povo não é de inquirir, Pedro, mas vai, a seu modo, atrás de saber.
Em troca, teu museu entrega-lhe aos olhos, disfarçada de relíquia, a quinquilharia que sobrou da porcelana francesa ou chinesa dos barões de Jundiaí, dos condes do Pinhal, dos marqueses e viscondes de sei-lá-mais-daonde. Esfrega-lhe na cara a mobília de madeira-de-lei do alto da qual tua aristocracia risível estuprava suas mucamas e delegava chibatadas. Tem a cara-de-pau de exibir-lhe, a título de um tal painel “Morar Paulistano”, raridades como uma caneta BIC, pás e espátulas de pedreiro, um carrinho de polícia de brinquedo, um revólver de plástico, câmeras fotográficas analógicas e uma caixinha de filme Kodak. Mostra-lhe modelos e mais modelos de urinóis e escarradeiras. (Longe deste teu súdito o atrevimento de escarnecer os brios da nação, oh magnífico Dão Pedro, mas teu museu faz lembrar por vezes a parte pobre da Feirinha da praça Benedito Calixto – ou mesmo a Feira da Ladra de tua doce Lisboa.)
Mas não te apoquentes, Pedro; pois tua sorte, como já dito, é que teu povo é cordato e bom. Prefere carpediar comendo churrasquinho de gato, cocada, milho cozido e algodão-doce em teu parque, tal e qual fosse festa de padroeiro do interior. Quer mais é zombar de tua pompa bufa desfilando por tua esplanada com toda deselegância indiscreta.
Só que burro, Pedro, esse teu povo não é: no fundo, sente que teu palacete-museu, tua esplanada, teu monumento, teu parque, teu riacho, é tudo tão inverossímil quanto esse teu grito. Mas prefere não mexer contigo, para não arriscar ficar sem feriado. Te cuida, Pedro.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
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