* A equipe de O Purgatório está de férias até o dia 8 de janeiro. Até lá, republicaremos diariamente uma seleção dos melhores textos de nossos colunistas ao longo deste ano. Bom fim de ano a todos e até 2012!
Jorge Luis Borges informa que o escritor francês Pierre Menard é outro autor (ou o autor) do mesmo (ou de um outro) Don Quixote, séculos após o original (ou o primeiro) ter sido escrito por Cervantes. O relato de Borges é minucioso, incontestável. Mas, porque inventado, não passa de tolo deleite.
Mais importante, porque real, é o caso de Dino Compagni, florentino autor da Cronaca delle cose correnti nei tempi suoi, entre 1310 e 1312. Mas não só dela. Evidências permitem-nos asseverar que Compagni escreveu também um volume apócrifo (talvez intitulado Il mio modo di fare), que esteve perdido por séculos até chegar, por mão de piratas de relíquias, à cúpula do jornal brasileiro Folha de S.Paulo, nos anos 1980. Em 1984, reapareceria com o infame título de Manual da Redação. Defensores do periódico se insurgirão com algum argumento borgiano. Mas trechos da Cronaca e o comentário do historiador Luigi Surdich não nos deixarão mentir.
Compagni, na Cronaca, prefigura os preceitos de seu futuro manual. Reproduzo minha tradução, com comentários entre colchetes: “Quando comecei propus-me a escrever a verdade das coisas certas [veracidade] que eu vi e ouvi [observação e precisão], mas que fossem coisas notáveis [relevância], cujos princípios ninguém visse certamente como eu [exclusividade]; e aquelas que claramente não vi, propus-me a escrever segundo audiência [atribuir às fontes]; e porque muitos (…) corrompem a verdade, propus-me a escrever segundo a maior fama [baseado na pluralidade de versões e/ou na qualificação da fonte. É dúbio, mas valem ambos].”
Surdich louva o original e “energico appello all’esperienza”. Afirma: “O condicionamento da mentalidade medieval não é tal a ponto de impedir Compagni de investigar”. Para então acrescentar: “Il Compagni, que é homem parcial, apresenta uma visão das coisas deformada pelo envolvimento político, e também pela vontade apologética de defender as próprias escolhas e justificar as próprias decisões.” Sem maldizer a parcialidade: “o que se perde em objetividade e verdade documental é compensado na dimensão emotiva e no pathos participativo.”
E a outrora metódica Cronaca vira um manifesto inflamado: “Oh, iníquos cidadãos, que o mundo inteiro hão corrompido…”
Isso no século XIV. Mas há quem diga, corroborando a falácia do tempo que passa, que tudo mudou desde então.
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