Aí um diabo de um cara veio com tudo bateu em cheio bem na traseira de meu carro. A culpa claro que é dele, mas já soube que não vai querer pagar. Não tem seguro e quer que eu convença minha seguradora de que a culpa foi minha – aí sim ele pagaria a franquia, e eles pagariam o conserto do dele também, que ficou um bagaço.

Dar um golpe na seguradora até que não seria mal, mas para isso eu teria que assumir de maneira assaz convincente a inverossimilíssima culpa por uma batida na minha traseira. E mesmo que eu conseguisse atuar a ponto de enganá-los, assumir a barbeiragem alheia me acarretaria uns 15% de aumento no preço do seguro do ano que vem. Sem chance.

A rebordosa, então, vai cair mesmo é pro meu lado: a franquia custa R$ 1.037; o conserto, R$ 1.479. Pronto: pago a franquia, resmungo um pouquinho e – oh, destino do homem cordial! – esqueço o assunto.

Já tinha quase me contentado em pagar e deixar pra lá, mas eis que me chega pelo correio o livro que traduzi para certa casa editorial paulistana da gema. “O Milagre do Papa”. Italiano-português, cento e três páginas, mais orelha e contracapa, um mês de trabalho e sabe quanto se ganha? R$ 960. Fiz a relação imediata: nem pra pagar a franquia do seguro presta!

É que a gente que mexe com as letras trabalha por amor, parece. Talvez esperando milagre, que um dia achem de pagar melhorzinho. Capaz que eu ainda um dia, desenganado tamanha a penúria, resolva apelar pra João Paulo II feito a freira. Diz no livro que ela rezou forte pro Papa, e o velhinho, mal completado um ano de morrido, curou a irmã de um Parkinson dado já como irreversível.

Aliás, o livro explica direitinho tudo sobre milagres: o primeiro passo é o pessoal começar a rezar para o candidato a santo e ir cada qual alcançando suas graças amém.

Falar em milagre, quem quiser entender mais desse negócio aí de milagre basta ler  uma croniqueta mundana do impagável Stanislaw Ponte Preta intitulada “O Milagre”.

Diz que um dia o vigário de uma cidadezinha morreu, e resolveram manter o quarto dele igualzinho como tinha ficado, em razão de homenagem à memória do pároco.

Aí um dia apareceu misteriosamente no quarto fechado do padre uma vela – pasmem! – acesa. E o povo gritou milagre!, e juntou uma ruma de gente rezadeira do lado de fora da janela. E o povo começou a alcançar suas graças. E o vigário ganhou fama de santo.

Uma pá de graças alcançadas depois – obra divina via intercessão do vigário, assim depõe o povo – passou a moda e cessaram as romarias. E a cidadezinha voltou a ser o que era.

Aí vem a parte que o livrinho do Papa não conta: um dia um freguês chegou na padaria do português, que ficava do lado do quarto do vigário milagreiro, e pediu uma cerveja. Passo a palava a Ponte Preta:

O português, então, berrou para um pretinho, que arrumava latas de goiabada numa prateleira: 

– Ó Milagre, sirva uma cerveja ao freguês!

Achamos o nome engraçado. Qual o padrinho que pusera o nome de Milagre naquele afilhado? E o português então explicou que não, que o nome do pretinho era Sebastião. Milagre era apelido.

– E por quê? – perguntamos.

– Porque era ele quem acendia a vela, no quarto do padre.

Pois então, moral da história: no fim, o que sobra é a franquia pra pagar. E o outro lá, barbeiro de uma figa, gabando-se de muito esperto, um belo dia irá receber uma intimação judicial e certamente será condenado a ressarcir a seguradora.

E a seguradora, sem fazer nada, terá ganho dinheiro dos dois lados. Eis o verdadeiro milagre: um inconteste milagre da multiplicação.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos