por carla bittencourt
ismael comeu meu coração de leão sentado na mesa do nosso café. eu quis gritar me deixe quieta, mas ele foi mais rápido, a boca toda cheia, nenhum resquício de bons modos, a única coisa de que me lembro foi pensar isso não é voluntário, e o malvado rasgando a carne com aquele dente torto. perdição de minha vida, nunca mais hei de clonar um verso de amor sequer, penso e, sofrida, desisto da resistência. deixa ele acabar o serviço, vai que sobra alguma coisa com a qual eu sobreviva.
ismael comeu meu coração duas vezes mais, três, abria a boca e ia assim, orgulhoso, mostrando a fome que tornava a existir tão logo o último pedaço encontrava aquela barriga sem fastio. eu então tratava de uma existência vidinha besta pra ver o que tinha restado e era bem muito, amor que você queria, não era, homem, isso eu avisei que estava aqui desde sempre. você fez que ouviu e não deu muito jeito de entendido, de repente virou inimigo. ou é de ruim que a gente chama sujeitos antropofágicos feito tu, ismael?
era meu coração disparado, devorado sem dó ou remorso, parecia caber certinho naquele destino impossível. ismael comeu também os remendos, abocanhou as partes doídas com algum cuidado, aqui onde é mais escuro é mais doce, sentenciava, olhando meu peito branco e vazio, abandonado de mim.
depois disso andei doida por algumas luas, minguava eu chorando, enchia eu querendo viajar pra longe. parava o olho num ponto e despejava ali o que tivesse ainda de pensamento e era quase nada. ismael, sístole e diástole de meus dias intranquilos, você deixou foi o espaço com o qual eu que me virasse pra saber como partir. não foi isso? ein?
sorte foi eu nunca nunca ter precisado de nada novo pra inventar felicidade. era até mais de memória que eu me reconstruía ou voltava a falar de sonho, sabe? até que, um belo dia, como quem termina um poeminha boboca de mariposa apaixonada, veio antônio e me deu a segunda edição do pelicano, para que eu pudesse ter o meu próprio jonathan. e isso, mesmo alminhas perdidas e sem coração feito eu, meu bem, entendem de ficar gostando.
carla bittencourt é a convidada especial das sextas de dezembro, durante as férias da titular tatiana mendonça
Deixe um comentário
Comments feed for this article