Certa vez fui entrevistar um antropólogo em Salvador. Tinha sido seu aluno e já conhecia sua maneira calma e prolongada de ser.

Depois do sorriso com que me recebeu na porta de sua casa, a coisa de que mais me lembro é de sua sala. Não porque a entrevista tenha sido ruim (ao contrário), mas porque aquele ambiente conectava-se a sua personalidade de um modo que ultrapassava a questão da autoria. Quero dizer: mais do que evidenciar que tinha sido concebido e montado por ele mesmo, era uma representação arquitetônica de sua personalidade. Refletia-a, ampliava-a, instalava no visitante uma presença. Era um espaço pessoal.

O que tinha essa sala? Nada, praticamente: apenas duas estantes brancas, mais compridas do que altas, cobrindo as paredes que terminam quando começa uma varanda, ocupada unicamente por uma rede branca. Nas estantes, livros e arte que suponho vir de países africanos.

E é so. Conectada a esta salona, numa salinha espreme-se confortavelmente televisão, mais livros, poltrona e sofá.

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Um parêntese: é difícil escrever sobre o tema do livro como o conhecemos na era do e-book. Dificil porque ja houve muita discussão sobre, e também porque, ao invés de se encerrar ou produzir mais debate, o que a discussão mais fez foi dar oportunidade a uma falsa dicotomia, criar lados nos quais nos dividimos. Minha impressão é que o fato de haver pessoas que são “a favor da praticidade do e-book” e outras que se posicionam “pelo livro físico” é prova de um debate ruim, cuja origem está em perguntas mal formuladas. E dizer isso não é propor a terceira via, igualmente inócua, do “há vantagens nos dois modelos”. Em suma: inventou-se que há um conflito entre modelos, quando o que há são diferenças e um impacto.

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A sala do antropólogo é um modelo com que sonho. Livros decoram, concentram nossa história, escolhas intelectuais, afetivas, escolhas erradas também.

E é preciso que estejam visíveis, ao alcance da mão, em forma física, para que possam representar o que representam na casa do antropólogo e na minha, futura, sonhada.

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Para terminar: estou propondo uma escolha? Estou tomando parte em uma discussão que acabei de considerar falsa? Estou preferindo o livro ao e-book? Não.

Apenas me incomoda que o computador, depois de virar a sala-de-estar da interioridade, lugar onde espalhamos memória, pensamentos, sentimentos, tente ser vendido de repente como o substituto do mundo exterior. Usei o exemplo dos livros, mas podemos falar em músicas, quadros, amigos, urbanidade, amor, morte. De repente, tudo cabe no computador, tudo pode ser feito a partir do computador, tudo deve passar pelo computador.

Enquanto puder, os livros que trocarei por e-books são os que uso na universidade – ou aqueles que tenho em xerox.

Diego Damasceno escreve às terças e, excepcionalmente, neste domingo