Sábado, madrugada. O boteco, no centro da cidade, já fechou as portas aos clientes, mas meu pai e eu seguimos lá dentro, afinal o dono é amigo de longa data do pai. Aquele se senta à mesa conosco, compartilhando cervejas e histórias. É ele quem resgata da memória o caso do brasileiro — do nordestino — que, nos anos de 1970/80, inventou um motor de automóvel movido a água e que, pouco tempo depois, sumiu do mapa. Meu pai conhece a história; ouviu dizer que certa montadora ofereceu uma bolada ao genial inventor para que se esquecesse daquela ousadia. Nosso amigo tem outra versão: o inventor foi apagado pelo governo militar, o qual, por razões de ordem econômica, associadas à necessidade de prestígio político para se manter no poder, não queria deixar o recém-nascido Pró-Álcool morrer. Quanto a mim, não tenho versão alguma; é a primeira vez que ouço aquilo; só me resta questionar. Começo destrinchando a história do dono do bar: em se considerando que o Pró-Álcool demorou décadas para dar certo, por que os militares não incorporaram o projeto do desconhecido nordestino em seu rol de feitos? Meu interlocutor não sabe rebater a pergunta convincentemente, mas não deixa por menos, trunfa de imediato: “Eu vi isso outro dia numa reportagem. Eu vi.”
Após chegar em casa e confirmar que a história do carro a água brasileiro era lenda urbana, comecei a me lembrar de outras histórias cuja veracidade me foi assegurada, igualmente, por gente que jurou tê-las assistido com olhos que os reflexos das telas hão de carcomer. Não faz muito, um amigo me contou que, em entrevista a Marília Gabriela, quando perguntado o que faria caso um filho seu se confessasse gay, o pastor Silas Malafaia teria retrucado: “Eu teria vergonha, da mesma forma que você tem do seu”, ou algo do tipo, referindo-se à fofoca que circula sobre o namoro entre a jornalista e o ator Reynaldo Gianecchini ter, com efeito, servido de fachada para o relacionamento deste com o filho daquela. “Ela ficou com a cara no chão! Eu vi, velho!”, garantiu-me o amigo.
Tem também a história de ACM no programa de Jô Soares: “Senador, são verdadeiras as insinuações de que o senhor manda matar seus inimigos?”. “Ah, Jô, o povo diz muita coisa… não se pode acreditar em tudo… por exemplo, também se diz muito que você é corno e viado…”. O mesmo Jô teria feito outra entrevista antológica: aquela em que Carla Perez afirmou que seu prato preferido era Duralex e que seu hobby predileto era um preto, de seda. Para ambas, em mais de uma ocasião, conheci gente que disse: é verdade, eu vi.
Curioso é que a onda do eu vi continua mesmo nos tempos de hoje, de resgate massivo dos registros midiáticos do passado, de registro abundante de fatos do presente e de acesso fácil a ambos. Tempos em que o hic et nunc da televisão deixou de ser imperativo, uma vez que se pode muito bem assistir na internet, mais tarde, por diversas perspectivas até, muito do que passou na tevê e que você não viu ao vivo ou no horário exclusivo da grade de programação. Bem como se pode garantir com grande percentagem de certeza — a confiar no empenho que os seres humanos têm em expor as gafes uns dos outros — que certas transmissões, como as histórias contadas aqui, não ocorreram.
Ainda assim, você vai encontrar muitas pessoas que vão negar o googlado ululante e continuar afirmando: tal coisa foi verdade, sim! Eu vi!
Não creio que elas estarão mentindo deliberadamente, por orgulho para voltar atrás, por vergonha de terem sido pegas em perjúrio. O que estará por trás de sua afirmação é a consideração de que elas podem até não ter visto, mas alguém de sua extrema confiança dissera-lhes que vira, e para elas isso é a mesma coisa de terem visto com os próprios olhos. O que demonstra o quanto o afeto é importante na constituição do que tomamos como realidade, podendo inclusive se sobrepor ao racional.
As recentes manifestações que eclodiram pelo Brasil também podem, em muito, ser explicadas por nossas relações afetivas. Muitos parecem ter se mobilizado pelo sentimento de que era importante estar ali; mesmo sem pauta, sem saber o que pedir, contra o que reclamar, era preciso ir às ruas. Tal contexto não torna os protestos menos legítimos nem menos políticos. Antes, torna-os mais impactantes, fermenta o acontecimento no imaginário. Por isso, ainda que esse tenha sido o primeiro grande protesto brasileiro da era dos registros abundantes, é certo que no futuro, mesmo num futuro breve, haverá muitas histórias que, embora inverificáveis em nossos bancos de dados digitais, permanecerão com a chancela de muitos, que vão estar lá para afirmar: eu vi!
E não estarão contando lorota.
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Breno Fernandes escreve às terças
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