Lívia Nery, especial para O Purgatório
Passar o feriado na casa de praia que pertence a minha família já não é a mesma coisa que há trinta e poucos anos, quando meu pai comprou, num stand na deserta praia de Guarajuba, um lote de 500 metros.
Pelo caminho que me leva ao mar, observo as casas, as pessoas, e as trilhas sonoras que embalam o feriadão. No cenário sobram tatuados marombados preparando o churrasco ao som de “Assim você mata o papai”. O Divino é aqui. Até o ponto em que pedi, com uma certa dose de vergonha, para a vizinha abaixar o som porque havia um doente em minha casa. Mentira, a doente era eu, estava (e continuo) sofrendo de intolerância múltipla, uma síndrome deflagrada pela queda na taxa de cordialidade do indivíduo. Refletindo sobre o porquê da mentira, percebi que abaixar o som porque o outro se incomoda não lhe soaria suficientemente justo.
Os marombados de hoje eram os playboyzinhos que dividiam as ruas comigo. Eu de bicicleta, alguns deles de minibugre. Pedi muito um desses de Natal, mas nunca veio. Nos finais de semana em nossa casa térrea, de varanda grande e aconchegante, nunca faltou nada. Falava-se besteira, tomava-se cerveja e muito churrasco já rolou. Mas minibugres e música alta foram vetados. Hoje assisto aos filhos dos playboys com mini jipes, ensaiando desde moleques a ostensividade que lhes aguarda quando forem pilotar as Rangers 4×4. As novas casas acompanham este modelo de ostentação em que a churrasqueira virou varanda gourmet em granito e aço inox, árvores são dispensáveis porque sujam a calçada e réplicas mal feitas de esculturas gregas enfeitam os portões que avançam na área da praia, pertencente à união. É a evolução da nossa espécie classemedista.
Do outro lado da pirâmide social está Monte Gordo, que também não é mais a mesma. O vilarejo serviu de morada para nossos caseiros, empregadas e diaristas e ainda abriga os pescadores que, embora pesquem no “nosso” mar, não tiveram a “sorte” de morar perto de nós. Muitos ainda se dividem entre a pesca e os serviços prestados para atender à demanda veranista da classe média da qual eu, bastante a contragosto, faço parte.
Meu pai me contou que estão construindo dois prédios em Monte Gordo. Para quem morar? Perguntei. Ora, os prestadores dos serviços. Claro, tinha me esquecido que a era Lula, se não nos nivelou no mesmo patamar econômico de poder, nos possibilitou ostentar de forma parecida. Uma classe de traficantes também tomou conta do lugar, ressignificando a dicotomia condomínio de veraneio-vila de pescadores e serviços em condomínio fechado de rico-bolsão de pobreza. As mazelas, é claro, sobram do lado mais fraco e respingam nas nossas fronteiras, quando os condôminos exigem reforço na segurança – que agora tem uma frota de motos patrulheiras – e resmungam por não mais poder dormir de porta aberta.
Aventuramos um passeio pela estrada acima. De Praia do Forte, onde havia ocorrido uma festa de camisa para playboys, saíam Trollers, Rangers e toda espécie de veículos monstruosos com adesivos “Chicleteiro”, “25” e “ACM Neto”. Mistura explosiva que vai comandar, a partir de primeiro de janeiro, a cidade de Salvador.
Meu tio, ex-dono de uma pousada em Pêéfe e que recentemente migrou para Imbassaí, também disse que a vila mudou. O clima zen do lugar agora só na vitrine da ChaChaDumDum. Rede de pesca só decorando a faixada da Osklen. Mas o melhor de tudo foi o relato de um novo perfil de hóspede, que vinha de Pojuca, ou até mesmo Monte Gordo, apreçando o pernoite. Eles traziam suas garrafas de suco, cerveja, sanduíche, tudo pronto para curtir Pêéfe gastando pouco. Como lhes negar o direito a este fetiche se a eles foi aberta a porta da esperança do consumo?
Subindo mais na estrada encontramos um grande conjunto habitacional de 44 apartamentos construído pelo Governo Federal, próximo a Imbassaí, provavelmente para abrigar o contingente que trabalha nos novos resorts que acabam de ser construídos nas proximidades. Grand Palladium, estava escrito numa das placas. Aparentemente nós, classemedistas, nos referenciamos na ostentação monumental romana neo-clássica e sem nenhum questionamento, endossamos a mentalidade servil que fundamenta o fosso social destas.
Se moramos em prédios, veraneamos em vilages e condomínios, os que nos servem agora também podem. Suaves prestações ad inifinitum lhes permitem ser o consumidor que nós somos. Como um amigo me disse, ao ler uma obra de Milton Santos, os produtos comandam as pessoas e o consumidor chega antes do cidadão. A classe média da qual faço parte se torna o padrão a ser seguido por uma legião de novos compradores. Ensinamos o modelo comprar-ostentar e, lamentavelmente, somente ele.
Pára o bonde da evolução que eu quero descer. E então, deixo lá mesmo o “homem cordial” que existe em mim e mando todo mundo tomar no olho do furico.
Camilla Costa não veio hoje – foi ver a troca da guarda do palácio e perdeu a hora. Mas ligou (de uma cabine vermelha) jurando que volta na semana que vem
4 comentários
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dezembro 2, 2012 12:24 pm às 12:24
Paulo Trindade
..
dezembro 2, 2012 12:26 pm às 12:26
Paulo Trindade
Fala dos “playboys” e “marombados”, mas mostra-se uma burgesinha incomodada com a ascensão econômica da turba farofeira. Agora é assim mesmo, queridinha! Quer exclusividade e ficar longe de preto e pobre, se manda pra Europa! Acompanhava esse blog até este post carregado de empáfia e preconceito.
dezembro 2, 2012 8:10 pm às 20:10
Ricardo Sangiovanni
Prezado Paulo: sua discordância é bem-vinda, mas mais do que rejeitar ou não a entrada de quem quer que seja na chamada classe média, me parece que o texto vai na linha de uma auto-crítica dos hábitos e valores que essa classe média pratica. O problema então reside não no fato de os (antigos) pobres agora poderem consumir junto com a antiga (e restrita) classe média, mas sim no que consome e no como consome essa classe média (formada tanto por quem já era quanto por quem recentemente passou a integrá-la). Por essa chave de leitura, o que incomoda não é o fato de a “turba farofeira” (veja que quem usa essa expressão é você) poder agora consumir, mas sim o fato de a luta histórica da imensa maioria dos brasileiros por melhores condições de cidadania acabe se resumindo a melhores condições de consumo – um consumo que muitas vezes representa muito mais uma sangria desatada de dinheiro do que uma ampliação e diversificação dos hábitos culturais e da cidadania de fato – em uma palavra, de educação, que infelizmente ainda falta seja a antigos, seja a novos membros da tal classe média. O que a autora me pareceu transparecer, note bem, é antes de mais uma agonia diante do modelo raso de consumismo que a classe média (a antiga) representou e ainda representa para quem ascende a ela. Portanto, quem critica (ou auto-criticar) os hábitos da classe média atual não está necessariamente aderindo ao “ódio de classe” que você identifica neste texto (precipitadamente, a meu ver, mas repito: sua discordância é bem-vinda). É ótimo que as pessoas possam comprar mais, morar melhor etc. mas isso não nos impede a nenhum de nós de defender que os hábitos de consumo sejam diferentes dos atuais, ou que diversos gostos musicais possam conviver uns com os outros, e não concorrer entre si, como se tudo se tratasse de uma disputa para ver quem tem o alto-falante mais potente (em tempos em que todo mundo pode comprar um).
Como editor do blog, agradeço que tenha sido nosso leitor até aqui, muito embora ainda torça para que você reveja sua decisão. Saudações!
fevereiro 14, 2019 4:02 pm às 16:02
Rosane
Nossaaaaa! Estupefada! Ouvi maravilhas sobre esse lugar… Tipo paraíso na terra. Pensando até em ir morar lá quando me aposentasse… Pensei que fosse um lugar tranquilo e sossegado. Simples e cordial.. Assim como, se achegue que todos podemos coexistir e viver e paz, curtindo a natureza. Após ler esse artigo fiquei com a pulga atrás da orelha…