Na falta de reflexão mais elaborada, deixo-lhes com um trecho da “Relação da Conquista e Perda da Cidade do Salvador Pelos Holandeses em 1624-1625”, da lavra do observador holandês Johan Gregor Aldenburgk, em que o dito cujo faz uma ligeira caracterização das “gentes” nativas.

Chamou-me a atenção o fato de, na descrição de Aldengburk, ser o índio nativo, em vez do africano, o povo caracterizado como besta ignominiosa exógena à espécie humana. Parece então que, ao contrário dos portugueses, aos olhos flamengos bem mais alma tinham os negros que os de pele vermelha. Não é que a estupidez tem das suas filigranas…

Bem mais que isso, e sem prejuízo da observância a todas as circunstâncias históricas e à mentalidade corrente daquela época, o que me impressiona mesmo é ver escancarada (como hoje já não se usa fazer) a expressão de uma visão de mundo que enxerga o “outro” como “sub-gente”. E o pior, pasmem, uma sub-gente matreiramente culpada, pelo discurso do dominador, por encontrar-se em tal “bestial” condição.

Imensa diferenciação que até hoje persiste, evidentemente que sob pátinas de economês, politiquês e algum progresso; mas triste e freudianamente perturbante.

Conforme segue:

Tratando com brevidade desta gente, diversamente chamada de brasilienses, índios, selvagens, canibais, ou caribes, direi que é disforme e se reproduz como os animais, crê pouco em Deus, não respeita aos seus nacionais nem aos estrangeiros, adora o demônio, tem o aspecto de figura humana, anda inteiramente nua, excepto a que vive junto aos portugueses, espanholou-se e paga tributo ao rei da Espanha; os desta casta mais civilizados, principalmente os homens, cobrem as partes pudendas com pedaços de pano de algodão; são criaturas grandes e robustas, de tal modo que vimos um, varado por três balas, cair e logo se levantar e fugir correndo, sendo perseguido por um dos nossos, que o matou, partindo-lhe a cabeça com o couce do mosquete. Igualmente, têm o corpo de côr amarela escura, grandes bocas de lábios arregaçados, cabelos lisos, duros e hirtos como cerdas de porco; vivem, mais ou menos, de cem a cento e cinquenta anos; moram em diversas ilhas; guerream uns com os outros, com grandes arcos de pau-brasil e flechas de canas, que crescem silvestres nos pântanos da terra, tendo na extremidade um espêto de pau-brasil com farpas e envenenado, de sorte que quem por elas fôr ferido morre em breve; comem carne humana, defendem-se e atacam com essas e outras armas, como azagaias, que usam nos altos rochedos, e pesadas maças. Tais povos habitam os bosques e as selvas, são bons pescadores, sabem nadar admiravelmente em baixo e em cima d’água, e pertencem à casta mui diversa da dos negros. Em suas primitivas terras, quando, há muitos anos, foram achados pelos portugueses, principalmente nos belos sítios à beira-mar, consentiram que êstes erguessem cidades, fortalezas, fortes, trincheiras, conventos, armazens, engenhos de açúcar, povoados e aldeias, para os quais afluiu gente, em parte voluntariamente, em parte desterrada, povoando aqueles ermos, multiplicando-se, prosperando, pagando seus tributos, e cujos descendentes ainda hoje ali habitam; mas, devido à perfídia e à crueldade dos selvagens, não podem aventurar-se a penetrar quinze a dezesseis milhas no seio dêles, por isso correm perigo de vida.

Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos