Como se precisasse lembrar palavra por palavra para que ninguém morresse, responsável por deter o mal, ela mesma, a partir do sonho e do homem que dizia aquelas palavras terríveis. Não terríveis em si, de uma forma terrível. Ou anunciando algo terrível. E a incumbia, ela mesma, de espalhar o que disse, a repetir da forma exata, e que fosse rápido, o mais rápido que pudesse, e que não esquecesse.
A rua ainda estava escura quando saiu sem saber direito para onde tinha de ir, mas sem querer pensar nisso porque todo o seu medo estava concentrado em não esquecer. Ia repetindo como uma oração, conta por conta de um terço imaginário, mas as palavras assim ligadas foram perdendo o sentido. Quando chegou numa praça sem árvores desesperou-se, porque não lembrava quase nada, só a primeira frase, e a que vinha depois, e das outras nem a sombra, e o mal que, por sua causa, recobriria indefinidamente as pessoas que amava e as que desconhecia, e por essas teve mais pena. E deu um beliscão no ombro preciso lembrar, e um tapa na cabeça preciso lembrar, e nada, nada, nada. Se ainda fosse sonho. Mas estava de pé, disso sabia com certeza, não estava dormindo, já tinha acordado, já tinha saído de casa. Estava perdida.
Se pensasse em outra coisa e depois lembrasse de tudo, como um clarão, como se só ela não soubesse que já tinha decorado, que é saber de coração. E as outras palavras todas, como tinham nascido. Se soubesse como todas as palavras tinham nascido, talvez entendesse tudo, de uma vez só, um relâmpago, mas não tinha certeza se depois disso poderia continuar vivendo. Não, talvez fosse essa a maldição.
E lembrou-se vestida de branco na beira da praia no final do ano, do pedido que de olhos fechados fez a Yemanjá, de que ficasse tudo bem, e a sensação de que ela respondia vai ficar tudo bem, como se seu corpo soubesse desde sempre e estivesse ali a confirmação. Mas como isso era possível, se não tinha levado flor de cor nenhuma, e os deuses dos pretos não estão para gratuidades. Qual está, não pode ser o da cruz, que faz morar em qualquer felicidadezinha uma grande culpa.
Não podia se perder em devaneios, não podia, mas agora via que o que Yemanjá queria dizer era que o mar iria sempre existir, e por isso estava tudo bem, não era sua vida específica, não era. Podia descansar para sempre nessa verdade eterna, boiar nela, nada temer, nada temer, nada temer, mas foi então, justo aí, que lembrou toda a terrível mensagem e soube exatamente para onde ir.
Tatiana Mendonça escreve às sextas
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