Existem causos que ficam adormecidos em nossa mente e, de repente, são resgatados por situações que à primeira vista não tem relação nenhuma com o ocorrido anterior – não sei como classificar isso, nem se não já o fizeram – e essa correlação nos induz a crer em algum significado desta vida. Mas o poeta, e é para isso que servem os poetas, nos desassossega:

A vida é um novelo que alguém emaranhou.

Recebi uma notícia esse semana que teve o efeito de um soco no estômago, daqueles que atingem a lateral do pâncreas e fazem você retrair a musculatura abdominal para absorver o golpe. Você peleia pelo menos até o gosto do fel atingir sua boca, que é quando a tontura desnorteia seus sentidos e obriga você a flexionar os joelhos para não ir a knockdown. O corpo resiste, mas a mente, ainda que momentaneamente, vai à lona. A sensação posterior é de entorpecimento e incredulidade. Talvez venha daí a premência de conectar-se com alguma reminiscência anterior. Voltar à tona para recuperar o fôlego.

Lembrei-me de uma madrugada quente de Salvador, quase todas são, onde entre bordejos por zonas boêmias desta inquieta urbe, recebi um chamado via telefonia móvel de mi compinche Vítor Rocha, o moço das sobrancelhas de taturana, esbaforido a me convocar:

-Venha pra Casa Da Mãe cá, Manu Chao tá dando uma canja aqui.

Estava a 100 metros do local e não titubiei a abandonar outras companhias para abarcar aquele momento especial. Pois sim, não era pegadinha regada a álcool e realmente Manu Chao estava a tocar algunas canciones sentado em um banquinho com uma viola desafinada. Soube que ele costumava vir a nossa Soterópolis para encontrar uma bela morena de Pernambués – e quem nunca amou uma morena de Pernambués não conhece o esplendor da vida – com quem dividia um barraco de teto de zinco. Enfim, é sabido que o francês se sente muito bem em qualquer canto da América latina.

Findada a singela apresentação (não lembro as canções), Manu pôs-se a prosear com os presentes e circular no ambiente, deixa mais que suficiente para que Vítor e eu – enxeridos e inconvenientes conforme prega o manual jamais publicado do jornalista petulante – nos aproximássemos para puxar assunto, muito mais Vítor que eu, pois me acanho do portunhol puxado pra castelhano nativo da Rua da Fonte Grande (Morro de São Paulo) que adquiri em muitos verões.

Eu tinha uma pergunta de colete – outra do manual do jornalista petulante – uma incerteza que me encucava a algum tempo e ali enxerguei o momento ideal para dirimi-la. Caprichei no portunhol e emendei, de bate-pronto;

-Manu, quê ser bixo-do-coco? (com acentos baianos, óbvio)

Após um gole na cerveza que tinha na mão e uma ajeitada no lenço da testa, ele explicou que, certa vez dirigia da França para a Galícia – ia visitar os parentes, o pai dele , Ramón Chao, é um respeitado escritor galego – avistou uma senhora na beira estrada. Parou e ofereceu carona. Ela aceitou e começaram a papear. Motivado pelo semblante triste do rosto enrugado da idosa, perguntou se algo a afligia. Ela lhe disse que o bixo do coco atormentava sua vida. Falou de seus problemas e inquietações e de como tudo aquilo afetava seu cotidiano. Para expurgar seus demônios, ela caminhava, muitas vezes a esmo pelos caminhos do antigo Reino de Galiza. Foi a única forma que ela encontrou para aplacar a fúria do bixo do coco. Quando remansada, voltava para casa. E vivia assim, a ensandecer e caminhar.

Baseado (o adjetivo, não o psicotrópico) na estória da vieja galega foi composta a canção que abre o segundo álbum solo de Oscar Tramor.

O bixo do coco levou uma dileta amiga minha. Foi esta a notícia que me deixou devastado e reflexivo essa semana. E quando estou reflexivo recorro a Pessoa, o poeta:

A vida é um novelo que alguém emaranhou. Há um sentido nela, se estiver desenrolada e posta ao comprido, ou enrolada bem. Mas, tal como está, é um problema sem novelo próprio, um embrulhar-se sem onde.

Quando a nossa vida estiver embrulhada façamos tal qual a senhora galega. Caminhemos até la Próxima Estacion: Esperanza.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                          

                                                                                                                                                                                             Alex Rolim escreve aos sábados