Nem bem amanhecia o homem do acordeon derramava as notas na Rua da Mariquita. Calhava de ser a mesma hora que Rita acabava as tranças do cabelo, duas médias e uma grande. Esta, pra fazer com mais esmero, deixava por último. Depois as duas médias compunham um penteado por cima da maior e tudo ficava bem arrumado na cabeça, agilidade que adquirira com a prática de vinte anos. Rita tinha feito vinte e cinco por esses dias.
Coisa era que o peito andava desarrumado.
Quando o homem do acordeon desandava a botar pra fora do instrumento tudo quanto era nota diferente, soprava pela janela da casa azul toda sorte de amor: os que perduravam, os que ainda seriam, os desarranjados, os arranjados há tempos, os doídos, os que já iam no rumo do desamor. Rita então pisava os paralelepípedos da rua com mais sentido de si.
Naquele pedaço de mundo, com casinhas que dava pra contar no dedo, alguém entendia o que ela guardava como uma pedra por dentro. Da casa azul saía o canto do espelho, era possível enxergar a ela mesma. Tudo isso porque quando Elisa partiu Rita desgraçou-se, caiu em desgraça mesmo, perdeu cadência no respirar, brigou com o colorido da Rua da Mariquita, tudo se quedou silente.
Não chegou a se declarar. Manteve a flor por desabrochar até pouco antes de Elisa suspender a mochila nas costas, dizer um “quem sabe um dia você se encontra”, morder o lábio inferior pra não mostrar que ele tremelicava, desaparecer no topo da rua. A trilha do homem do acordeon nunca fora tão incisiva, e pra ela e pra ela trago eu e o coração, Dominguinhos, Rita sentia, tô voltando estropiado, e Elisa já não era mais figura visível contra o sol.
Desde aí, parecia uma sintonia. Rita acabava a última trança, punha o pé na Rua da Mariquita, fosse cedo, fosse tarde, o homem do acordeon parecia saber de lá, da casa azul, e desfiava o seu repertório de amores. E então o mundo ficava maior, mais pesado e ia pousar nas costas de Rita, a menina de cabeleira trançada que perdera o tempo de dizer. Andava por todo o calçamento vestida com o tempo que não voltava e que se afogou em mudez.
Nunca entrara na casa azul e nunca vira a cara do autor da trilha da sua agonia. Com o peito em polvorosa, empurrou a porta de madeira entreaberta no fim da rua, o azul falando fundo ao peito. Atravessou a sala, seguiu a música.
Empalideceu.
Era uma mulher, com o acordeon no colo.
Rita sentou no meio do quarto e chorou chorou chorou chorou.
Carmezim escreve às quartas-feiras
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