Dos pedidos que fiz para amainar a dor aguda do dia da minha morte, o dia de hoje, carregado, vivido sob o leito desta cama à beira-mar, um me fez engasgar com o pouco de saliva da minha boca já seca bastante. Entupiu-me de uma emoção maior que a dor de deixar os que aqui vão ficar. Era uma epifania, senhores. Uma dedicatória-epifania. Calhou-me mais do que a medalhinha de São Nuno de Santa Maria, calou-me mais do que as fotos que trouxe por debaixo do casacão de lã até a areia da praia – pais, filhos, amigos. Com o corpo já muito debilitado pela doença, ainda reuni forças para copiar, de próprio punho, o escrito: assim podia pensar que fosse meu, brotando da minha mão, da minha cabeça, do meu peito. Estava no livro de Hilda Hilst que eu havia pedido para ler quando o peito arfante já me avisasse a hora. Livro gasto, Do Desejo, de um sebo qualquer. Na folha branca que antecedia os poemas. A caligrafia trêmula. Dela pra ele.
“Amor meu maior,
desgraça de noite que se abateu sobre a minha cabeça quando da sua ausência. Debilitei-me, sucumbi aos cigarros em seguida, dias sem comer ou escovar os dentes, desandei a arrancar as flores da janela, lembra da orquídea que você me deu? Quando foi a última vez que você me disse “Porque há desejo em mim, é tudo cintilância”? e riu-se, esclarecendo: é Hilda Hilst, meu amor. Acabo de perceber que a miséria da minha alma é a sua bem sucedida aventura por entre os carinhos que não os meus. Os livros torrei-os em fogueira dentro mesmo de casa, pra que poesia? Eu como só as lembranças, amor meu maior, eu alimento meu ventre de lembranças, eu amanheço lembrança e anoiteço em dor, porque essa espera, amor desgraçado, abismo onde me joguei, essa espera me derrete cada minuto. É uma espiral. Bonito, né, e-s-p-i-r-a-l? Não troquei a fronha, não mexi no copo que ficou na mesa e não catei os cacos do que arremessei para arrancar seu corpo da minha frente, porque você não podia ter me dito o que disse, que ia que ia que ia que ia. Meu amor maior, você não foi. Está aqui, cintilando. Por que isso não descansa dentro de mim? Acendi duas velas: uma pra me curar dessa doença que Deus me deu não sei porquê, essa doença de desejo e de querer. A outra pra te desejar mais vida bem vivida porque mesmo desgraçando os sentidos do meu corpo já desvanecido sinto que só a sua vida, a sua existência rodando neste universo me dá acalanto e esperança. Fique com Hilda pra você.
V
Existe a noite, e existe o breu.
Noite é o velado coração de Deus
Esse que por pudor não mais procuro.
Breu é quando tu te afastas ou dizes
Que viajas, e um sol de gelo
Petrifica-me a cara e desobriga-me
De fidelidade e de conjura. O desejo
Este da carne, a mim não me faz medo.
Assim como me veio, também não me avassala.
Sabes por quê? Lutei com Aquele.
E dele também não fui lacaia”.
Carmezim, titular das quartas, publica excepcionalmente nesta terça. Diego Damasceno, titular das terças, volta amanhã.
2 comentários
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novembro 29, 2011 10:25 am às 10:25
Ricardo Viel
Mortal. Muito bom. Grande abraco, Viel
novembro 29, 2011 10:36 am às 10:36
Carmezim
Valeu, Viel! Abração!