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Há pouco mais de dois meses moro em Salamanca, uma cidade universitária de cerca de 150 mil habitantes onde a violência é coisa rara. “Mais tranquila que o pátio de um convento de freiras”, definiu um amigo colombiano. Para quem vem de Bogotá (como ele) ou de São Paulo (como eu), viver aqui é um agradável exercício diário de desconstruir algumas paranoias. Uma delas é a do perigo das madrugadas. Em qualquer dia da semana é comum ver garotas andando sozinhas, saídas das discotecas rumo a suas casas. A possibilidade de acontecer algum tipo de violência com elas é quase a mesma de que caia um meteoro em suas cabeças.
Mas na semana passada a calma da cidade foi quebrada quando um homem de 66 anos, “armado” de um machado, atacou sua companheira (dois anos mais velha que ele) a poucos metros da praça central, nem bem o relógio marcava nove da noite. Dizem as testemunhas que a senhora só não foi morta no ato porque um herói anônimo (que acabou ferido) conseguiu dominar o agressor. Ele não tinha passagem pela polícia. Ela está na UTI.
A Espanha, em geral, é um país que não padece da violência que nós, os latino-americanos, sofremos diariamente. A maior causa de morte no país é uma doença (o câncer) e não traumas causados por balas ou acidentes de carro. Ver alguém armado, ler sobre ataques a bancos ou assaltos a casas não é algo corriqueiro nem mesmo nas cidades grandes – ainda que esse tipo de violência venha crescendo nos últimos anos.
Recordo uma pequena discussão que aconteceu na Colômbia durante uma oficina de jornalismo de que participei. Uma colombiana, um pouco brava com os comentários duros do professor, um espanhol, o acusou (e citou a Espanha toda) de ser grosso, mal-educado. A resposta dele, meio em tom de brincadeira e algo de sarcasmo, foi de que ela tinha razão, que os espanhóis se desentendiam por tudo, falavam alto, mas não eram como essa gente “amável” que se mata nas ruas depois do segundo copo de bebida. Fazia referência à banalização da solução pela bala que impera em muitos países do nosso continente.
No entanto, há algo que (infelizmente) une espanhóis e latino-americanos: as agressões contra as mulheres.
Na sexta-feira foi celebrado o dia contra a violência de gênero. O jornal El País compilou todos os homicídios que noticiou neste ano relacionados ao assunto. São 54 relatos que têm muito pouco em comum além da covardia praticada por homens contra suas companheiras (ou ex).
O perfil das vítimas e dos assassinos é variado, democraticamente dividido entre classe social, idade – a mais jovem das mortas tinha 18 anos e a mais velha passava dos 70 – e nacionalidade. Espanholas, brasileiras, chinesas, suecas, italianas, colombianas, bolivianas, peruanas que sucumbiram após serem atacadas a golpes de facas, canivetes ou qualquer objeto capaz de ferir (o uso de armas de fogo é raro). Em muitos dos casos, aos agressores não “bastava” matar, queriam desfigurar suas vítimas, botar fogo em seus corpos, destruí-las.
Diferentemente da maioria dos países da América Latina, a Espanha tem um sistema jurídico e uma polícia que funcionam bastante bem. Tem leis que protegem a mulher (como a Maria da Penha, no Brasil), canais efetivos de denúncias e muitas campanhas contra a violência de gênero. Ainda assim, as agressões e ameaças persistem.
Chama a atenção nos relatos do El País que a grande maioria dos agressores tenha sido presa minutos depois do ato praticado. Muitos deles inclusive ligaram para a polícia avisando que haviam cometido um crime e/ou esperaram pacientemente a chegada das autoridades.
A fama de “macho latino-americano”, a violência epidêmica e a certeza da impunidade poderiam explicar, em grande parte, porque essa prática primata de se agredir a uma mulher ainda persiste em muitos países da América Latina. Mas como justificar que em lugares onde nenhum desses fatores acima citados se aplicam ainda existam tantos casos de homens que, por não aceitar que o amor acaba, agridem e matam?
Ricardo Viel escreve às segundas