Nasci na Bahia, já vivi em São Paulo; gosto das duas terras e arrisco dizer: são antípodas.
Padecem, é claro, ambas, por brasileiras, da mesma e atroz desigualdade que determina ainda certa ditadura da camada mais rica sobre a mais pobre da população. Mas enquanto em Sampa os pobres adaptam valores e estilo de vida dos ricos a sua humilde significância, na Bahia, é a camada mais bem-de-vida que adequa à sua pretensa nobreza os valores e o estilo de vida da assim chamada ralé.
Ande de ônibus em São Paulo e note que todo officeboy se esforçará para parecer playboy. Endossará camisa engomada, sapato lustrado, gel no cabelinho espetado. Usará fone de ouvido para falar no celular – treino para quando um dia tiver as mãos ocupadas no volante do possante – e não raro afinará a voz: é a namorada.
Em Salvador, a branquelagem não hesitará em se tratar por negão. Camisa pólo será o máximo da engomação; gel e camisa de botão, só em ocasião. Playboy que se preze anda de bermuda e chinelo, alguns até lotam boteco barato de beira de esquina. Senta de perna aberta na cadeira de ferro, bota a carteira e o celular em cima da mesa – telefone é pra recado, ai da mulé se ela ligar duas vezes. E chama o garçom na praia por “Diga aí, minha cor”.
“Em primeiro lugar você não é de minha cor”, foi a resposta que um dia ouviu uma amiga de Camilla Costa num contexto desses. (Não que ela seja playgirl; nem a conheço).
Sim, porque, como comecei dizendo, tanto na Bahia quanto em São Paulo, a divisão da sociedade é a mesma. Reitero: não é porque o rico aqui quer parecer com o pobre, e não o contrário, que a Bahia resulta ser uma sociedade mais libertária – a ordem que vige é a mesma, a da exploração da mão-de-obra.
Acontece que, transposta às relações de trabalho, essa hegemonia transviada dota a Bahia de alguma peculiaridade – há quem chame de magia – que transparece em situações tragicômicas, característica que talvez explique a pecha de povo pouco afeito ao trabalho que nos acomete.
Noite dessas mesmo calhou que eu, recém-tornado da terra da garoa, parasse, em doce companhia, para um lanche no Habib’s. A garçonete achegou-se para anotar os pedidos, faladeira. “Boa noite gente, desculpe, estou meio assim, meio lerda. É que estou sem comer nada desde meio-dia.”
Saudades de tanta franqueza. Retruquei: “Com fome numa lanchonete? E não tem como dar uma pausa e fazer uma merendinha?”
A mocinha respondeu que sim, que o faria num instantinho. Perguntei então se ela, estando no Habib’s, comeria esfihas no lanchinho.
“Esfiha? Eu? Eu não. Pedi aos meninos [da cozinha] para esquentar a comida que eu trouxe [de casa]. Esfiha não dá sangue. O que dá sangue é comida de verdade, sabe?”
A moça se foi, e nos rimos. Arrisquei, de pitaco, que tal comentário jamais se ouviria em São Paulo – capaz que o contrário, a garçonete nos dissesse, parecendo convicta da própria falácia, que a esfiha do Habib’s era a melhor do mundo.
Torna a garçonete em coisa de minutos, nenhuma questão de esconder que palitava os dentes com a língua. “O que você comeu?”, perguntei.
“O pessoal me enrolou. Não quiseram esquentar minha comida. Tive que comer rapidinho três esfihas e um kibe.”
Comer, ela come. Mas não veste a camisa. É assim desde o tempo da escravidão.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
11 comentários
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novembro 20, 2011 10:00 am às 10:00
Igor Soriano
Gostei muito do comparativo social que foi traçado nunca tinha reparado neste comportamento entre as classes nestes estados. Interessante mesmo!
novembro 20, 2011 10:13 am às 10:13
Ricardo Sangiovanni
Grande Laranja, sempre assíduo :) Fico aguardando sua chegada para continuarmos esse assunto devidamente regados a umas geladas. Abraço
novembro 20, 2011 12:52 pm às 12:52
Thiago
No fim, você foi e não falamos. Sou fruto da confusāo de SP. Perdoe esse pobre que não deseja ser playboy, nāo. Ontem teve Racionais no Memorial. O frio espantou geral, mas corou a virada ao dia do consciência negra. Espero que esteja feliz e bem por aí. Braçāo.
novembro 20, 2011 7:23 pm às 19:23
Ricardo Sangiovanni
Valeu mano velho! Perdoe a generalização: foi necessária para fins de brevidade e retórica, seguramente não basta para conter figuras raras como você :) Estou bem, seguimos em contato. Abração!
novembro 20, 2011 1:58 pm às 13:58
Joana Tavares
Ricardo, sabe que também tenho refletido sobre as peculiaridades culturais e ontológicas da Bahia rsrs que acaba por ser espontaneamente anti-sistema e anti-opressão nessa sinceridade cotidiana. Adorei sua reflexão! Beijos, Joana
novembro 20, 2011 7:25 pm às 19:25
Ricardo Sangiovanni
Oi, Jo! Uma alegria sua visita, sua leitura. Apareça sempre, bjs!
novembro 20, 2011 3:41 pm às 15:41
Tatiana Mendonça
adorei
novembro 20, 2011 7:25 pm às 19:25
Ricardo Sangiovanni
;)
novembro 20, 2011 10:15 pm às 22:15
rosanamilliman
Genial, meu rei (?) minha corrente (?) sangue bom (?) parmalat(?)
Beijos!!!
novembro 21, 2011 9:11 am às 9:11
Diego D.
Muito bom. Acho que somos bem por ai mesmo.
dezembro 6, 2011 11:27 am às 11:27
Tássia Novaes
Meados de setembro fui à copiadora mais bala da cidade, dia de semana, apressada, em horário comercial. cheguei 1 hora antes do fechamento. mas, para meu espanto, a bendita já estava lacrada, sem nenhum informe/justificativa na porta. logo, concluí que, a copiadora não funcionava mais até às 22. desavisada eu, pensei. no dia seguinte, voltei pela manhã no primeiro horário e espontaneamente comentei com o funcionário que não sabia que tinha mudado o horário de funcionamento. ele respondeu: – não. o horário continua o mesmo. é que ontem foi o caruru dos 7 funcionários. Poxa! mas vocês podiam avisar, retruquei. – É que não tem nada fixa, senhora… é no dia que o dono faz (piu!). Quem sou eu pra atravessar Cosme, Damião e Doun (!). O respeito ao dendê nessa terra me facina.