Qual imenso pesar pairou por aqui após a morte do colega Gelson Domingos, domingo passado. Colega, se me for ainda facultado o predicado.
A bala do civil zuniu na orelha do polícia, furou o colete e morreu quente no peito do jornalista, ora cinegrafista pela TV Bandeirantes.
Morreu fazendo o que amava, disseram uns. Outros, que em cumprimento de dever ou missão. E que era experiente. E que o colete, embora varado, era do bom.
O caso é que Gelson Domingos morreu domingo passado. Amando o que fazia, vá lá, mas porque estava ali a mando, atrás de uma notícia que, aposto, jamais teria sido tamanha se ele, o próprio Gelson Domingos, não tivesse apanhado aquela bala. Afinal – é triste usar a expressão nesse caso, mas não vejo escapatória – se um cão morde um homem, não há notícia; notícia mesmo, só quando o homem morde o cão.
Cão é o mundo em que a cena em que um homem filma a própria morte é exibida trocentas vezes pelo próprio empregador do dito cujo – afinal, se deu audiência, tome-lhe plim-plim, tome-lhe replay, até na concorrência.
Minha memória é fraca e minha erudição é pouca, mas o impacto da cena me fez puxar da lembrança uma outra: a de um jornalista argentino que também filmou a própria morte em “A Batalha do Chile”, obra monumental do chileno Patrizio Guzmán.
A cena é a mesma: no filme, câmera em riste, o homem registra o momento em que um atirador dispara contra sua própria lente e estrebucha caindo no chão.
A cena é quase a mesma: no filme, o jornalista está entre os civis que protestam por liberdade, na rua, no Chile em franca ebulição dos anos 70, contra os soldados; e o disparo fatal vem do soldado. No Brasil em branda abundalhação da semana passada, o jornalista estava entre os soldados, que se embrenhavam na caça de um civil privado de liberdades (bandido, que fosse, mas civil); e o disparo fatal vem do civil.
A propósito de soldados e civis, passou um dia depois da morte de Gelson, e mais um punhado de meus colegas de predicado aparece enfiado detrás dos ombros da polícia, no mega-evento de reintegração da posse do prédio da reitoria da Universidade de São Paulo. Será que estudamos tanto (nem tanto, nem tanto) para, no final das contas, ter de honrar a odiosa missão de passar em revista a tropa de 400 soldados armados até os dentes para render pouco mais de 70 estudantes mirrados?
Quantos jornalistas foram enfiados dentro da reitoria no momento em que a polícia entrou? Salvo engano meu, nenhum. Nem poderiam, uma vez que, dias antes, haviam sido recebidos a pedradas pelos estudantes – nada justifica a violência, é vero, mas o histórico recente de coberturas de protestos do gênero mostra que a grande imprensa não lhes sonega má-vontade. Será que, em tempos de Youtube, nenhum estudante esqueceu uma bendita câmera de celular ligada no momento em que a PM entrou na reitoria? Mandaram alguém apurar o que aconteceu na primeira hora em que a polícia esteve trancada com os estudantes, sem testemunhas?
A mando, nem sempre amando, de que lado é que acabamos ficando?
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
5 comentários
Comments feed for this article
novembro 14, 2011 9:37 am às 9:37
Diego D.
Boa pergunta.
novembro 14, 2011 5:40 pm às 17:40
Faiga Klabin
Sua frase me lembrou o filme 400 contra 1 A História do Comando Vermelho, direção de Caco de Souza e roteiro (fantástico) de Julio Ludemir.
Nós, jornalistas, temos sido expostos a essa vida louca, quatrocentos contra quatrocentos, um contra todos, um pessoal treinado (nem tanto, nem tanto – parafraseando o colega) no meio e nós, gaiatos, crentes que somos imunes, a receber balas sobre coletes. E ainda há quem venha culpar os coletes.
novembro 14, 2011 5:46 pm às 17:46
Rosa Bernarda
A história do filme, dos 400 policiais deixando o asfalto, subindo o morro para prender um “líder do movimento” – tudo a ver com a ocupação da USP. Pensei que a lembrança fosse direto do túnel do tempo mas… o filme é de 2010, né mesmo? Foi legal ver a desmistificação de que a “esquerda” treinou o Comando. Era, no Fundão, um encontro de titãs. Na USP, outro.
novembro 16, 2011 12:43 am às 0:43
Ricardo Sangiovanni
Pois é, Rosa…
um abraço, apareça :)
novembro 16, 2011 12:42 am às 0:42
Ricardo Sangiovanni
Olá, Faiga. Não vi ainda o filme, já pus na lista. Obrigado pela sugestão e pelo comentário, apareça :)