*A equipe de O Purgatório está de férias até o dia 13 de janeiro. Até lá, republicaremos diariamente uma seleção dos melhores textos de nossos colunistas ao longo de 2012. A todos, um bom 2013!

em Palma de Monte Torto não chovia há exatos 517 dias

quando o profeta apareceu gritando lá vem chuva lá vem chuva o povaréu todo se aglomerou debaixo do juazeiro e rezou como se reza para o time do coração ou para alcançar glória maior que vai trazer muita felicidade de uma hora pra outra, um tornado dentro da vida

o povaréu era um mundaréu de gente mesmo, que deu a mão e gritava em silêncio, uma vibração singrava o ar seco-doído de Palma do Monte Torto e o padre arrastando a batina carcomida pelo sol da caatinga veio de lá vociferando que o profeta era louco, que Deus era lindo, que quem diz que vai chover não é o homem, que que que que que

do meio da multidão com a cara seca alguém que tinha a voz rouca quebrou o silêncio da reza coletiva para falar “padre, bom homem, hoje há de chover porque senão há quem aqui nunca mais pise o pé na sua santa casa” e o silêncio voltou com mais força porque alguém tinha confrontado Deus e o padre e tudo o que não era possível de ser visto

o chão da praça estava coalhado de pequenas cabeças pretas, algumas galegas, mas a maioria preta, com a poeira sambando e zombando do zumbido das vozes de dentro das pessoas na praça

quem abrisse o braço contra o vento que vinha da pista de asfalto da entrada de Palma de Monte Torto capaz era de ficar assim por sempre, com a cara de pingo de água em chapa quente, virando estátua de areia, evaporando até mesmo a lágrima que ainda nem tinha caído

e era assim: nem mesmo as pessoas tinham mais gota de água na cara pra chorar

e o profeta se esgoelava lá vem chuva, lá vem chuva, e o povaréu olhava pra cima, suspirava como se água fosse milagre qualquer a água que fosse, e não tinha sombra e o sol era desgraçado e as pessoas se entreolhavam no meio do grupo todo e desgostavam uns dos outros porque os outros já viravam quem beberia a água que porventura viesse e não ficaria água pra todos e tudo seria seca de novo

mas ao cabo da vida, senhores, disse o profeta, quase já sem voz, o que vale é que estamos aqui e a fé na água da chuva é o que nos sobra porque não hemos de ser os esquecidos nos confins deste país por quem quer que seja, porque somos gente crente vivente e todos somos reis e rainhas desta seca que seca as nossas almas

e dito isso, a chuva caiu por 13 dias e as crianças da praça abriram a boca pra catar cada gota, sorrindo o sorriso das almas lavadas.

                                                                                         Carmezim escreve às quartas-feiras