Anota o escritor e historiador das religiões Mircea Eliade que “grande número de tribos primitivas, sobretudo as que se detiveram no estádio da caça e da colheita, conhecem um Ente Supremo: mas ele não desempenha quase nenhum papel na vida religiosa. Sabe-se, por outro lado, muito pouco a seu respeito, seus mitos são pouco numerosos e, em geral, bastante simples. Acredita-se que esse Ente Supremo criou o mundo e o homem, mas que abandonou rapidamente as suas criações e se retirou para o Céu”. É como ele abre a seção Deus otiosus do capítulo “Mitologia, Ontologia, História” de seu livro Mito e Realidade.
Na sequência, Eliade elenca uma penca de cosmovisões que corroboram essa sentença, entre as quais duas que contribuíram vivamente para a formação do povo baiano, quando não do brasileiro em geral: a dos Iorubás, da Costa da Mina, e a dos Bantos, de Angola.
Foi por sinal justamente a ideia de um Deus Supremo ocioso que me chamou atenção na leitura dos Mitos e Lendas dos Orixás de Pierre Fatumbi Verger. Numas poucas páginas, o “Renascido Através do Jogo de Ifá” nos explica que, na mitologia do candomblé, os orixás são “os primeiros homens”, dotados cada um de características humanas, à guisa de arquétipos nossos. E que, acima de todos eles, há sim uma divindade criadora e onipotente – a qual porém, uma vez tendo criado tudo, não mete mais o bedelho nas querelas de suas criaturas. Voltando, aliás, a Eliade: “geralmente, só se apela a esse Deus esquecido depois de haverem malogrado todas as demais tentativas junto a outras figuras divinas”.
Pois o que me pareceu excelente – quando não revolucionário, vide nossa pobreza – na estrutura da religiosidade de matriz africana foi precisamente a possibilidade de não-intervenção contínua do Deus-Pai (onipotente e onipresente, como nos ensina o Cristianismo) nas questões mais mundanas e íntimas dos homens. Ora se não é uma maravilha, para o homem religioso, poder acertar suas contas direto com quem de direito – Iemanjá, Xangô, Oxossi, Ogum, Oxum, Iansã etc – em vez de depender de “meu Deus” para tudo – do dinheiro para pagar o fiado ao filho probo e laureado, do marido que ainda vai-se encontrar um dia ao gol amarrado da miséria do Bahia. Uma verdadeira descentralização da ouvidoria celeste.
Mais como auto-crítica e auto-conhecimento (pois, muito embora não professe qualquer religião, venho de família católica e estudei em colégio-de-padre) do que como ataque à fé de quem quer que seja, cumpre-me afirmar que a religiosidade cristã é deveras infantil. E é essa dependência eterna do Pai Supremo para desembargar a vida que infantiliza tudo. Infantiliza o culto, infantiliza o sacerdócio, infantiliza o fiel.
Infantiliza até o discurso de quem, criado sob a batuta de Deus-Pai-Todo-Poderoso, resolve se rebelar contra ele. Pois veja você que até mesmo certo ateísmo fundamentalista consegue, a um só tempo, ser tão lúcido para perceber que não se deve perder a vida esvaindo-se em ilusões, e tão pueril ao ponto de achar que o caminho para libertar-se delas é induzir ou provar a inexistência de Deus.
Não percam tempo com isso, amigos: Deus existe, claro que existe, existe sim: nunca houve, não há e possivelmente não haverá humanidade sem divindade. O que parece igualmente evidente é que melhor que combater Deus é domá-lo, tangê-lo feito gado manso para o pasto do ócio eterno, fazer qual os ingleses fizeram com a rainha.
O que me intriga por fim é como um homem tão inteligente como Eliade ainda chama Iorubás, Bantos e tantos outros povos em que o Deus é graciosamente otiosus de tribos “primitivas”. Deve ser ironia, um sarro para matar a cristandade de vergonha.
Ricardo Sangiovanni escreve aos domingos
5 comentários
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outubro 14, 2012 10:51 am às 10:51
Eduardo Sarno
A questão do Deus judaico, meu cara Ricardo, é que os judeus precisavam de um Deus para instrumentalizar. Criando Jeová, os patriarcas tiveram em mãos (e em mentes) uma maneira de conquistar terras que eram de outros povos e manter unido e sob as suas ordens um povo aguerrido. Com o tempo e Jeová já um pouco ocioso, vieram os romanos e acabaram com a festa e a farra dos judeus. Curiosamente os romanos se apossam do Deus judeu, e o utilizam para a manutenção e expansão do seu império. Este império termina também sendo destruido, mas aí a religião católica, qual erva daninha, se apossa de toda e qualquer forma de governo existente, e sempre reproduzindo a forma nefasta de se imiscuir na vida do cidadão, do nascimento até a morte, do amanhecer até o anoitecer. É este maleficio permanente e diuturno que muitos ateus procuram esclarecer, tirando das trevas os que pensam estar na luz.
Eduardo Sarno
outubro 14, 2012 11:57 am às 11:57
Eduardo Sarno
Em tempo: o termo “primitivo” , usado pelos antropólogos, principalmente Eliade, não tem nada de pejorativo. Significa, da raiz latina “primeiro” , vindo em primeiro lugar.
outubro 14, 2012 2:05 pm às 14:05
Eduardo Sarno
Em tempo: assim como “primitivo” não rebaixa, “civilização” também não exalta. Os termos servem para traçar a linha divisória entre os povos pré e pós escrita. Os “civilizados”, possuindo códigos escritos, concentração em cidades, uma produção de bens maior, podem equipar exércitos com novas tecnologias e praticar a barbárie em maior escala.
Comparando aos tempos modernos, a informática serve para o banqueiro e o comerciante calcular a fração de centavos que vai te tomar e ao exército prever o ponto exato do impacto da bomba. Eis a civilização !
outubro 15, 2012 10:51 am às 10:51
Ricardo Sangiovanni
Agradecido pelas informações, são muito bem-vindas. Mas não tocam no centro da questão, que é a função social do Deus e da divindade. O que critico não é esse tipo de esclarecimento, que o ateu pode muito bem fazer; mas sim um descaminho perigoso que é combater a essência do Deus judaico-cristão usando suas mesmas ferramentas, tentando por fim ocupar com a razão o lugar que esse Deus-tirano forjou e hoje ocupa. O que observo é que vale pouco ter todas as informações sobre o embuste que é esse Deus para, então, tentar depreender daí a desimportância do divino, da transcendência, demonstrando que não existe Deus nenhum, que a religiosidade é um delírio. Delírio por delírio, já passamos da era em que a religião regia absolutamente tudo; já há, hoje, um domínio compartilhado entre fé e racionalidade/ ciência, que por fim não explica tudo nem (até hoje) resolveu nada. Ter esperança de que a razão “ainda não mostrou a que veio” é semelhante a ter esperança/ fé em Deus. O que quero dizer (numa parte do texto, e não em seu todo) é que o ateu, a partir do momento em que entra em conflito com a religiosidade usando de suas mesmas ferramentas (discurso unívoco, argumentos absolutos, deslegitimação e ironização da existência alheia) se iguala a ela, e por fim legitima o absurdo que é, não a existência de Deus e a crença nele, mas seu trono enquanto ente absoluto. O discurso da razão absoluta é primo-irmão da intolerância, e é ela (e não a religião) o problema de fundo.
Sobre o “primitivo”, ótimo esclarecimento – quis apenas fazer uma piadinha, mas saiu pela culatra.
Abs!
outubro 15, 2012 10:54 am às 10:54
Ricardo Sangiovanni
* em tempo: em “por fim legitima o absurdo que é, não a existência de Deus e a crença nele”, leia-se “a existência de qualquer forma de divindade, não quis me restringir à judaico-cristã / católica.