Apesar da entrada contemporânea, o teatro Globe, recriação atual do que teria sido o teatro do qual Shakespeare foi sócio nos séculos 16/17, obedece tão fielmente quanto possível ao desenho do original. É aberto – de vez em quando, ouvíamos um avião passar – e tem a mesma configuração de lugares: o pessoal que quer ou pode pagar menos fica em pé, no fosso logo abaixo do palco, sujeito a seja o que for que jogarem de lá; o resto se divide entre os bancos de madeira cobertos do térreo e dos dois andares acima.
As peças são encenadas sem microfones, sem amplificação e sem muitos cenários mirabolantes, apesar do figurino impecável. Os intervalos tem uma bandinha barroca animando a turba e os atores aparecem cantando canções de duplo sentido de outrora. Agora eu podia sentar aqui na frente deste computador e falar sobre o simulacro, a simulação e como falta alguma faísca de emoção nesse pastiche descarado do teatro elisabetano. Mas não vou, porque não falta.
As piadas sujas e a ironia que só a interpretação ao vivo do texto permite entender e a participação bagunçada e espontânea da plateia dizem que aquelas obras foram provavelmente escritas para serem vistas assim, como a mais pura diversão barata, com menos reverência e mais profanação. A gente gosta de pensar que Shakespeare é cinema iraniano, mas é blockbuster de Hollywood. Sem ofensa.
Ao sair da seção de “A megera domada” de hoje, falávamos sobre como é muito mais provável que vejamos Shakespeare encenado de maneira mais semelhante ao que se fazia no século 17 hoje do que se via em 1860, por exemplo. Mesmo que estivessem mais próximos, os do século 19 sabiam muito menos sobre o período do que se sabe hoje e é interessante pensar em quantas das sutilezas desses textos foram perdidas e reencontradas quatro séculos depois. São essas sutilezas, inclusive, que transformam momentaneamente o passado em presente e nos aproximam das pessoas e da sociedade que já fomos. Essa compreensão e reencontro são das coisas mais bonitas do teatro, da literatura, do cinema, de quase todas as formas de arte/entretenimento, talvez, e da vida mesma.
Por falar em sutilezas perdidas, este projeto sobre línguas em extinção da National Geographic nos apresenta dois verbos de uma língua russa do povo Tuvan: songgaar e burungaar. Songgaar é olhar/ir para trás, ou seja, em direção ao futuro. Burungaar é ver o passado, ou seja, ir adiante. Para o povo tuvan, o passado, porque nós conseguimos vê-lo, está logicamente na nossa frente e o futuro, desconhecido, fica atrás de nós, onde não podemos enxergá-lo.
Parece que as melhores recriações de Shakespeare acontecem agora, porque enxergamos bem tanto passado adiante de nós. E que algumas das melhores ficções futuristas eram, no fundo, reflexões sobre o tempo do escritor – um mundo já muito distante do tempo dos personagens – o que pode provar que os tuvans têm razão. Deixemos o futuro para trás. É repensar o passado, o nosso jeito de andar para a frente.
Camilla Costa escreve aos sábados.
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