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“Dura a vida alguns instantes
Porém mais do que bastantes
Quando cada instante é sempre”
Chico Buarque, Sempre
Estaria Chico Buarque se tornando um personagem da própria mitologia?
A pergunta me veio ouvindo um disco seu ao vivo – donde, é claro, faltava a imagem.
Ele canta: “Eu te vejo sumir por aí, te avisei que a cidade era um vão”, em As Vitrines. Pouco antes, ele cantava, em Bolero blues, letra que escreveu para a música do contrabaixista que o acompanha, sobre a incompatibilidade de tempos entre um homem velho e uma mulher nova: “Quando ela já não mais garota der a meia-volta, claro que já não vou estar já nem aí”.
Não, não falo literalmente; não estou sugerindo que Chico está escrevendo sobre a própria vida (ele seria o velho da música etc.) – até porque isso acontece indiretamente sempre, e diretamente às vezes, como em Essa pequena, do seu último disco.
Me pergunto ao mesmo tempo se ele, sumindo do mundo, não estaria se reencontrando carnalmente com aquilo que até agora foi som. Ou melhor: se despindo do corpo e vivendo uma passagem para o outro lado, feito de canto, letra e música.
Chico sempre cantou caminhos – estradas (Mano a Mano, Mambembe, Bye, bye Brasil), cidades (Subúrbio, Dois Irmãos, Pivete), viagens (Samba de Orly, Olha, Maria) –, sempre narrou o olhar (As vitrines, Olhos nos olhos, Atrás da porta ), sempre relacionou tempo e sentimento (“preciso não dormir, até se consumar, o tempo da gente” ou “não se afobe não: que nada é para já / o amor não tem pressa, ele pode esperar”); quando ele diz que sai para andar no calçadão carioca para desanuviar, está falando mais sério do que parece.
E me pareceu agora, ouvindo seu penúltimo disco, Carioca ao vivo, que sua voz soa mais e mais etérea, e eu uso essa palavra porque ela precisa bem essa ideia de algo que permanece mas que não tem matéria; uma presença sem corpo. Chico guarda até hoje um traço de um jeito de cantar que vem do rádio dos anos 1940. Um jeito que, antes de chegar em Chico, foi amaciado por Vinícius de Moraes (penso na grandiloquência algo mansa ou na mansidão ainda algo grandiloquente dele cantando “Dora, rainha do frevo e do maracatu…” no disco O poeta e o violão) e tornado mais próximo da fala, da narrativa, da conversa brasileira e interiorana com Tom Jobim (exemplo supremo é Dinheiro em penca). Chico é não uma, mas varias etapas de uma historia musical da qual ele quis ser herdeiro e defensor.
Não poder ir aos shows (os últimos?) de Chico é obviamente uma pena. Mas a possibilidade de ouvi-lo sem vê-lo, por outro lado, não é uma noticia que me faz mal receber. Porque agora vejo que tudo isso estava previsto: do homem que diz “Madalena foi para o mar / E eu fiquei a ver navios” (1965) ao igualmente anônimo protagonista de Estorvo (1991), seu primeiro romance, até finalmente o carioca que escreve em Querido diario (2011), Chico foi se retirando aos poucos do mundo, do nosso mundo aliás, para ir penetrando, cada vez mais, no dele.
Diego Damasceno escreve às terças